quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

CARA DE FESTA



Ano Novo tem cara de festa.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro tem cara de festa da vitória. Eu e ele conseguimos completar mais uma maratona que durou 12 meses.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro, em tempos como esses em que quase todos os noticiários informam que temos duzentos mil mortos pelo mal do momento e poucos noticiam um milhão e trezentos mil mortos por todas as outras coisas, um Ano Novo assim mostra, num primeiro momento, a cara de uma eufórica festa da vitória, mas não de uma jornada esportiva. Vitória em uma guerra. O prêmio não é uma taça. O prêmio é estar vivo! Mas isso é num primeiro momento.

Logo em seguida, como em todo começo de ano, nos entregamos a reflexões. Desta vez não só quanto à necessidade de parar de fumar na semana que vem ou de começar academia e dieta na próxima segunda.

Primeiro alguns pensam que muita gente morreu, mas muita gente nasceu. Praticamente ninguém comenta os três milhões de crianças que nasceram em 2020. Gente nascendo nunca mais foi notícia depois do suspeitíssimo interesse de Herodes pelo assunto no ano 1. Gente morrendo sempre gera comoção e uma ânsia por informações gentilmente oferecidas por emissoras, blogs, sites, vídeos, jornais, revistas e qualquer outro meio através do qual possamos satisfazer uma temporária morbidez que nos acomete ao sabermos de males que estão atingindo os outros e não a nós.

A percepção de que pode nos atingir também a qualquer momento começa a nos causar uma preocupação seletiva. Ela faz com que tenhamos muito medo daquele mal fartamente divulgado e nos esqueçamos por completo de todos os outros males que podem nos matar e que continuam em vigência. Não precisamos mais olhar pros dois lados da rua antes de atravessar desde que estejamos usando máscara.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro, em tempos como esses, também é motivo para orgulho. Mesmo com tudo acima de tudo e tanta coisa acima de todos, apesar do que nos acometeu, nos preocupou, nos entristeceu, nos empobreceu física, econômica e emocionalmente, nos arrasou neste ano que termina, ainda assim estamos aqui. Vivos. Em pé. Resistindo. Principalmente acreditando.

Continuamos a acreditar que as coisas podem mudar e que, ao mudar, farão isso pra melhor. Por acreditar, até nos movemos em direção a isso, tentamos ajudar essa mudança a acontecer. Mesmo sem saber, colaboramos para que haja mudanças. E acreditar é o embrião e o alimento da esperança.

Sendo assim, como esperança é o que temos, que se espalhe a esperança de que 2021 seja um ano de soluções, de resoluções, de tomadas de posição, de atitudes e, principalmente, um ano de vida! Que seja justificada a esperança de que essa causa mais noticiosa de mortes seja debelada, sim, mas que as outras, a bala perdida, o trânsito, os bombardeios pelo mundo, os milhares de doenças fatais, o enfarto fulminante, a poluição, o câncer, o desmatamento, a violência, a AIDS, os preconceitos, que tudo isso, se não desaparecer, pelo menos se reduza.

Que este novo ano não precise, lá no fim, de uma sensação de guerra vencida.

Que este novo ano, lá no fim, não dê troféu a ninguém porque não houve uma maratona.

Que este novo ano, enfim, apenas tenha cara de festa.

Todos os dias.

Mesmo pra quem não faz aniversário em janeiro.

domingo, 29 de novembro de 2020

ORIGEM

 


        Aí ele acordou...

Levantou-se e foi até a sala. Viu copos e pratos sobre a mesa, restos de pernil, algumas taças com vestígios de mousse de manga. Em volta da árvore enfeitada, indícios do que tinha sido a noite anterior, a alegria das crianças rasgando em tiras papéis de presentes. A festa de Natal havia passado.

Na cozinha, colado na garrafa térmica a qual todos sabiam que ele iria procurar assim que acordasse em busca do reconfortante gole de café que, junto com o subsequente primeiro cigarro do dia, traria equilíbrio ao pobre cérebro confuso depois de uma festa, havia um bilhete: “Não quis acordar você. Fui passear no parque com as crianças. Voltaremos depois do almoço.”

O café e o cigarro não ajudaram na confusão mental que o bilhete causou. No parque? Com as crianças? E o isolamento? E a pandemia?

Ligou a TV e as notícias deram um arremate na perplexidade. Falava-se de política, de esporte, de eventos pós-natal, mas nada sobre Covid.

Após o estranhamento inicial, passou a prestar atenção ao que era dito. Em um canal noticiaram as inaugurações de um novo hospital e três novas escolas marcadas para dia dois de janeiro. Em outro, um programa de debate político com pessoas que ele não conhecia mas que, claramente, eram de espectros bem opostos. Mas ninguém alterava a voz, discutiam-se ideias e propostas. Mudou de canal e, em um programa de variedades, comentava-se sobre o Natal em um bairro mais afastado, onde prefeitura e empresas da cidade se aliaram para prover uma ceia e presentes pras crianças cujas famílias eram as últimas que ainda não tinham entrado no novo programa de empregos, coisa que, pelo que estavam dizendo, ocorreria, no máximo, na metade de janeiro. Em um canal religioso, viu, atônito, um pastor evangélico, um monge budista, um hindu, um padre, um rabino, um imã e um babalaorixá deliberando em que pontos e a que nível eles poderiam colaborar uns com os outros em causas sociais.

Sem saber o que estava acontecendo, acessou a Internet e ali viu a criação de postos de saúde, a ampliação de transportes públicos, anúncios de medicamentos a preços bem acessíveis contra males cuja cura nem se antevia.

Um pensamento maluco surgiu: “Por quanto tempo eu dormi?”.  Mesmo se achando idiota, foi ver a data. No mesmo instante começou um pronunciamento de fim de ano do Presidente da República.

“Não é possível... Estamos em...” e, antes de terminar o pensamento começou o pronunciamento. “E o presidente é o...”

Aí ele acordou.

Os restos da festa eram os mesmos, mas a esposa e os filhos estavam pela casa esperando que ele levantasse pra irem visitar a tia. Iam levar o presente dela. De carro. Todos de máscara. Estavam seguros.

Ele tomou o café, fumou o cigarro, colocou a máscara e saíram. Ele ainda estava um pouco confuso, mas, por baixo da máscara havia um sorriso. Um sorriso meio esperançoso. Tudo tinha sido tão real que poderia muito bem acontecer. As coisas podiam ficar como ele viu no sonho que teve. Ou não tinha sido um sonho e agora é que ele estava sonhando? E se tivessem sido dois sonhos e a verdade fosse uma terceira opção?

Aí ele acordou.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

MEDO

 


    Ataulfo levantou-se ali pelas duas e meia da madrugada. Todos na casa dormindo. A esposa (“Se é ideia do Ataulfo, com certeza, vai dar em coisa errada”), a filha (“Pai, preciso de uma ajuda”) e o neto que não chama o avô de vovô e sim de Tatá. Ele foi batizado com o mesmo nome do avô, mas todo mundo o chama de Taufinho. Aos 65 anos, acordar no meio da noite era comum pro Ataulfo. Alguma coisa nele lutava incansavelmente pra evitar a incontinência urinária e fazia com que ele acordasse a tempo de ir ao banheiro. 

Como em todas as noites, Ataulfo saiu do quarto e, sem acender as luzes da casa, foi ao banheiro, passou pela cozinha, pegou um café, sentou-se à mesa da sala, e ali ficou por alguns minutos, olhos meio fechados pra não perder o sono, caneca em uma mão, cigarro aceso na outra, pensando na vida. Na penumbra. Iluminação, só a que vinha da rua pela janela, bem pouca, difusa, um alívio para olhos cansados de um homem com um inconfessado medo do escuro total.

Os olhos, por um instante, se fecharam de vez. Sono. Nesse momento ele sentiu o toque. Parecia que alguém havia tocado no braço dele com um dedo! Pensou em abrir os olhos, mas o medo o deteve. E se ele visse alguma coisa assustadora tocando no braço dele? Manteve os olhos fechados, tentando se convencer de que havia sido impressão, nada havia tocado nele.

Histórias que ele mesmo contava pra brincar com o neto ou com a filha vieram à sua mente. O apartamento era velho. Muita gente deve ter vivido e morrido ali. E se algumas almas atormentadas ainda permanecessem no local? A tubulação do prédio era antiga. Lendas falavam de bichos jogados na privada, levados ao esgoto e que, em contato com detritos tóxicos, teriam crescido, se tornado imensos e ameaçadores. O que tocou nele? O dedo putrefato de um velho cadáver redivivo que, em seguida, iria dilacerar sua garganta? A garra de um gigantesco pitu de aquário prestes a se vingar de qualquer coisa com forma humana?

Medo. Às vezes explode numa reação externa, braços e pernas reagem por instinto, empurrar a ameaça, sair correndo pra longe dela são reações não planejadas. Às vezes implode em reações internas. A corrente sanguínea se acelera, a respiração fica curta e rápida, os batimentos cardíacos disparam. O corpo do Ataulfo escolheu a segunda opção.

Sem coragem de abrir os olhos, ele sentiu que ia começar a respirar no ritmo do pavor. Não queria chamar atenção do que quer que estivesse ali. Segurou a respiração. O coração disparou. Se fosse um instrumento podia-se dizer que passou de duas batidas por compasso pra quatro. Respiração ainda presa, coração a oito batidas por compasso. Mas quando Ataulfo sentiu a mão tocando em seu rosto, cada compasso passou a comportar dezesseis batidas! E acelerando! Até não aguentar mais. Um instante antes do colapso final, Ataulfo abriu os olhos e entendeu tudo. Mas era tarde. O coração não aguentou. Sua cabeça pendeu, a metade superior do corpo desabou sobre a mesa da sala e os olhos de Ataulfo se fecharam pra sempre.

No velório, a viúva chorosa comentava com a cunhada: “Mas que ideia, passar mal na sala sem dizer nada até morrer”. A filha, com o peito apertado, sofria a perda mas, lá no fundo, se preocupava: “E agora, quem vai me ajudar quando eu precisar?”

Taufinho não estava no velório. Fora levado para a casa de uma vizinha pra não ficar mais impressionado do que estava. Já se sentia culpado demais: “Ele estava dormindo sentado. Podia cair. Eu só encostei um dedo no braço dele, depois botei a mão de leve no rosto, sem falar nada, pra não assustar o Tatá”.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

PUF

 


Fim de semana, mulher e filhos no sítio. Argeu inventou uma desculpa e ficou em casa. Um fim de semana em paz pra si mesmo. Discussões com a mulher, cobranças de filhos, barulho o tempo todo, televisão com programas de que não gostava, sempre irritado, sempre reclamando.

– Um dia eu sumo daqui! Desapareço! Viro fumaça! Puf!

A família até brincava com essas frases que Argeu repetia à exaustão por toda a vida sem jamais ter criado coragem de se afastar nem por um dia. Pelas costas se referiam a ele como o Doutor Puf.  Com a família fora, Argeu teria dois dias só pra ele. Dois dias em que ele bastaria a si mesmo.

Mas isso não durou nem mesmo o primeiro dia. A noite chegou, o silêncio entristecia, não ter o que fazer deprimia, não haver com quem conversar oprimia, nenhum motivo pra rir ou pra implicar aparecia. Foi se deitar. Insônia. A cama era grande demais só pra ele.

Ouviu o barulho. Uma porta bateu. Não sabia definir se havia sido em outro apartamento ou na sala. Tinha certeza de que havia fechado todas as portas antes de ir se deitar. Levantou-se, ainda no escuro, um tanto assustado e bateu a perna no móvel de cabeceira que se arrastou por alguns centímetros.

– Porcaria de movelzinho inútil – disse em voz alta, quase contente por ter com o que implicar.

Antes de abrir a porta do quarto, arriscou:

– Quem está aí?

Vagarosamente, com a coragem própria de alguém que está sozinho em uma casa às escuras, abriu a porta do quarto e olhou para o corredor. Teve a impressão de vislumbrar, em meio à escuridão, um fio de névoa no ar, como uma pequena fumaça de alguma coisa que estivera ardendo e se consumira rapidamente.

A curiosidade surgiu como a irmã maior e mais forte da pequena coragem e ele atravessou o corredor que terminava na sala. À esquerda, a porta que levava à cozinha. Lá havia outra porta, no lado oposto, dando para a área de serviço. Na outra ponta do corredor ficava o interruptor que, depois de acionado, trouxe luz ao ambiente e um corpo mais robusto para a coragem. Olhou de volta pro corredor e não viu nem sinal da tal fumaça. Talvez uma impressão causada pela visão prejudicada com a falta de iluminação.

Atravessou a sala, abriu a porta da esquerda, passou pela cozinha, abriu a porta da área de serviço, sempre acendendo luzes. Olhou tudo e não notou nada de diferente. A curiosidade foi se encolhendo enquanto a coragem tomava corpo.

– Que bobagem. Claro que foi a porta de outro apartamento que bateu. Amanhã vou falar com o síndico sobre esse pessoal barulhento.

Voltou apagando luzes. Chegou ao corredor, apagou a última luz e, nesse instante, percebeu que havia esquecido de fechar a porta da cozinha. Antes que ele pudesse se virar, o vento empurrou a porta que bateu com um estrondo.

No momento seguinte ouviu um barulho vindo do quarto. Como se um móvel pequeno tivesse sido levemente arrastado. Ouviu uma voz distante dizendo “Porcaria de movelzinho inútil”. Deu ainda um passo instintivo no corredor e ouviu a mesma voz, uma voz mais próxima, uma voz atrás da porta do quarto, uma voz bem familiar, sua própria voz: “Quem está aí?”

A porta começou a se abrir mas Argeu sabia que não veria mais nada. No instante seguinte, veio a certeza de que, antes que a porta se abrisse, Argeu deixaria de ver, sentir, pensar qualquer coisa...

Em seguida... Puf!

segunda-feira, 29 de junho de 2020

DE SUSTO, DE BALA...


Meu dia-a-dia até março de 2020...
Acordava cedo. Muito cedo. Quatro e meia, cinco da manhã. Pra nada. Acordava porque acordava. Banheiro, intenção de voltar pra cama, na volta um café, um cigarro, a intenção de voltar pra cama desaparecia na fumaça. Lia alguma coisa, pensava um monte de coisa, quase nada muito aproveitável, a lembrança de que existia uma cama já tinha se mudado para um passado distante. Ligava o computador. A cada dia uma coisa diferente: via um vídeo, pesquisava uma curiosidade, escrevia alguma coisa, ouvia rádio, lia as bobagens inconsequentes em alguma rede social, a cabeça viajava durante essas atividades e, de repente, as coisas estavam mais claras. Não na minha cabeça. As coisas estavam mais claras do lado de fora da minha janela. O dia começava a despontar. Nesse momento, com frequência, vinha à mente a lembrança de algo que parecia haver se perdido nas brumas do tempo e nos meandros das fake news: a intenção de voltar pra cama!
Ao clicar em “desligar” desfazia meu contato com o mundo virtual de relacionamentos vagos e informações imprecisas e reatava minha sempre turbulenta ligação com três velhos amigos invariavelmente desprezados: o travesseiro, o colchão e o cobertor. Sou de um tempo em que a gente se cobria em português mesmo e não com edredons. Ficava naquele estado intermediário entre o sono e a vigília, o corpo quase todo acreditando que estava em repouso mas os ouvidos dando uma vaga e distante idéia de que o mundo começava suas atividades. Pouco mais de uma hora depois, os ouvidos conseguiam convencer o resto de que estava na hora de fazer alguma coisa. Me levantava. Um café, um cigarro, computador ligado novamente e começava a trabalhar na parte burocrática do que faço pra ganhar a vida. Relatórios, programações, correções de traduções feitas por pessoas que até que se viram bem no inglês mas não sentem a mesma paixão pela correção no português, elaboração de escalas de trabalhos, envio dessas escalas e já estava na hora de começar a providenciar o almoço.
Cozinha. Temperos. Cebola, alho, pimenta do reino, bacon, páprica, colorau, tomates, feijão, arroz, carne, frango, alface, tomate, ovos... O mundo da gastronomia trivial, a elaboração do tão apreciado conjunto arroz-feijão-bife-batata-frita-salada ou do macarrão ou do prato especial que naquele dia deu vontade fazer.
Banho. Roupa limpa. Dar almoço pro neto. Comer. Trabalhar. Ganhar a vida. Exercer as atividades que exerço há décadas para garantir não só o almoço e o jantar, mas o gás com que prepará-los, a água usada pro cozimento ou para a lavagem de panelas e utensílios, a energia elétrica para ligar liquidificador, processador e outras maquininhas além da água quente pro banho e a luz pra que se possa enxergar o que se está fazendo. E, claro, um lugar com paredes e teto onde proteger todas essas coisas e as pessoas para as quais faço essas coisas.
Trabalhava a tarde inteira, um pedaço da noite, o trabalho terminava, voltava pra casa, passeava com o bicho, um serzinho peludo ao qual a família insiste em tratar como bichinho de pelúcia mas que eu e ele sabemos ser um cachorro, jantava, dividia minha atenção entre o computador e a família, entre amigos no whatsapp e a esposa, entre fãs no Facebook e as filhas e netos.
Todos iam se deitar, eu ficava acordado assistindo a alguma série ou filme ou vídeos de humoristas e de filósofos, nem sempre conseguia estabelecer a diferença, os olhos pesavam, a cabeça já não entendia direito, ria de Sartre e tecia considerações profundas sobre uma frase de Afonso Padilha. Era hora de me deitar.
E a rotina recomeçava. Pequenas variações a cada dia, mas, basicamente, essa era a minha vida até março de 2020.
Meu dia-a-dia atual pode ser descrito em menos tempo. Na verdade posso contar tudo em apenas quatro palavras: exatamente a mesma coisa!
Não sei se sou um valente ou se sou um irresponsável. Se prezo demais a vida que tenho com minha família ou se sou um ganancioso que não está nem aí pra nada. Na verdade, ainda não tive tempo de pensar de verdade no assunto. A vida não nos dá muito tempo para ponderações na hora de tomar decisões.
Estou bem, estou vivo, estou saudável até onde pode estar saudável um fumante com mais de sessenta anos.
Não sei se sou heroico ou inconsequente. Não faz diferença pra mim. Não estou interessado em me tornar nem uma coisa nem outra. Já dá muito trabalho ser simplesmente eu. O que sei é que se alguma coisa mudar nesse dia-a-dia, a parte mais prejudicada vai ser a do teto e a do almoço. Se meu dia-a-dia não for daquele jeito, não há como viver.
Alguns dizem que sou só um maluco, que posso morrer porque saio de casa pra ir comprar a cebola que acabou pra poder temperar o feijão ou porque, às vezes, vou ao local de trabalho fazer alguma coisa, mesmo com máscaras, luvas, álcool e todo o resto.
O que não percebem é que estão dizendo isso a um homem que, aos sessenta e seis anos, pode morrer mesmo sem fazer nada, trancado em casa, escondido embaixo da cama, tremendo de pavor se ouvir alguém espirrando no apartamento ao lado.
Um dia o poeta baiano ensinou e eu guardei. Sei que adiante, um dia, vou morrer. De susto, de bala ou vírus. Porque o vício... bom, esse parece que desistiu de tentar me matar.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

LÍDERES, AMIGOS E CONTRAS


Todo agrupamento humano é formado do mesmo jeito.
Há os Líderes. São os que que mandam. Criam regras, tratados, acordos, normas e regulamentos. Não têm muita certeza de que tudo seja bom, por isso criam equipes, fiscais, comissões, patrulhas para que o cumprimento de tudo seja garantido. Fingem que não querem, mas gostam que os outros os chamem de Líderes. Juram que vão mandar para o bem de Todos os que formam aquele grupo. Juram que só eles sabem o que é bom para Todos.
Logo abaixo vem o grupo dos Amigos dos Líderes. Não têm coragem nem disposição para mandar. Se contentam em serem vistos como aqueles que vivem colados aos Líderes. Pequenas rêmoras grudadas, se alimentando dos restos que os tubarões deixam para trás. Repetem tudo o que os Líderes dizem. Acham que os Líderes são fortes, poderosos e inteligentes e acreditam que também parecerão fortes, poderosos e inteligentes com essa convivência íntima e subserviente.
Na outra ponta, vêm os Contras. Contradizem tudo o que os Líderes determinam. Mesmo que seja alguma coisa correta ou benéfica. Os Contras alegam que lutam contra o mal que os Líderes fazem a Todos. Na verdade, eles querem é tomar o posto de comando e ditar novas regras para o bem de Todos do grupo. Os Contras alegam que só eles é que realmente sabem o que é bom para Todos.
Os três núcleos têm uma coisa em comum: ninguém pergunta o que os tais dos Todos acham que é realmente bom.
Só que, enquanto os grupos se digladiam pelo direito de mandar e salvar, os tais dos Todos, na verdade, não estão nem aí pra eles.
Líderes, Amigos e Contras infundem medo. Fazem ameaças veladas. Quem não segui-los, quem não obedecê-los, não terá a chance de compartilhar do mundo perfeito que eles prometem. Na verdade, não terá nem mais o direito de estar entre Todos. Por isso, Todos fingem que concordam com eles. Fingem que concordam com os Líderes, com os Amigos e com os Contras. Ao mesmo tempo! Todos nem percebem que são mais espertos, mais plurais, mais ecléticos e mais poderosos do que os Líderes, os Amigos e os Contras.
Assim é em qualquer instância: sociedades de bairros, governos, sindicatos, até mesmo em condomínios, festas organizadas, rodinhas de bar ou redes sociais.
Nenhum dos grupos está realmente pensando em Todos e sim no próprio poder. Líderes, Amigos e Contras pensam apenas em vencer discussões e disputas. Pensam, acima de tudo, em conservar sua posição.
Enquanto isso, por instinto de sobrevivência, Todos fingem obedecer aos Líderes, aos Amigos e aos Contras mas, na verdade, seguem suas mentes, seus corações, suas consciências, seu conhecimento e suas necessidades para tocarem suas vidas do jeito que acharem melhor.
Afinal, esse é o único jeito de realmente se viver a vida que se tem.