domingo, 29 de novembro de 2020

ORIGEM

 


        Aí ele acordou...

Levantou-se e foi até a sala. Viu copos e pratos sobre a mesa, restos de pernil, algumas taças com vestígios de mousse de manga. Em volta da árvore enfeitada, indícios do que tinha sido a noite anterior, a alegria das crianças rasgando em tiras papéis de presentes. A festa de Natal havia passado.

Na cozinha, colado na garrafa térmica a qual todos sabiam que ele iria procurar assim que acordasse em busca do reconfortante gole de café que, junto com o subsequente primeiro cigarro do dia, traria equilíbrio ao pobre cérebro confuso depois de uma festa, havia um bilhete: “Não quis acordar você. Fui passear no parque com as crianças. Voltaremos depois do almoço.”

O café e o cigarro não ajudaram na confusão mental que o bilhete causou. No parque? Com as crianças? E o isolamento? E a pandemia?

Ligou a TV e as notícias deram um arremate na perplexidade. Falava-se de política, de esporte, de eventos pós-natal, mas nada sobre Covid.

Após o estranhamento inicial, passou a prestar atenção ao que era dito. Em um canal noticiaram as inaugurações de um novo hospital e três novas escolas marcadas para dia dois de janeiro. Em outro, um programa de debate político com pessoas que ele não conhecia mas que, claramente, eram de espectros bem opostos. Mas ninguém alterava a voz, discutiam-se ideias e propostas. Mudou de canal e, em um programa de variedades, comentava-se sobre o Natal em um bairro mais afastado, onde prefeitura e empresas da cidade se aliaram para prover uma ceia e presentes pras crianças cujas famílias eram as últimas que ainda não tinham entrado no novo programa de empregos, coisa que, pelo que estavam dizendo, ocorreria, no máximo, na metade de janeiro. Em um canal religioso, viu, atônito, um pastor evangélico, um monge budista, um hindu, um padre, um rabino, um imã e um babalaorixá deliberando em que pontos e a que nível eles poderiam colaborar uns com os outros em causas sociais.

Sem saber o que estava acontecendo, acessou a Internet e ali viu a criação de postos de saúde, a ampliação de transportes públicos, anúncios de medicamentos a preços bem acessíveis contra males cuja cura nem se antevia.

Um pensamento maluco surgiu: “Por quanto tempo eu dormi?”.  Mesmo se achando idiota, foi ver a data. No mesmo instante começou um pronunciamento de fim de ano do Presidente da República.

“Não é possível... Estamos em...” e, antes de terminar o pensamento começou o pronunciamento. “E o presidente é o...”

Aí ele acordou.

Os restos da festa eram os mesmos, mas a esposa e os filhos estavam pela casa esperando que ele levantasse pra irem visitar a tia. Iam levar o presente dela. De carro. Todos de máscara. Estavam seguros.

Ele tomou o café, fumou o cigarro, colocou a máscara e saíram. Ele ainda estava um pouco confuso, mas, por baixo da máscara havia um sorriso. Um sorriso meio esperançoso. Tudo tinha sido tão real que poderia muito bem acontecer. As coisas podiam ficar como ele viu no sonho que teve. Ou não tinha sido um sonho e agora é que ele estava sonhando? E se tivessem sido dois sonhos e a verdade fosse uma terceira opção?

Aí ele acordou.