segunda-feira, 29 de junho de 2020

DE SUSTO, DE BALA...


Meu dia-a-dia até março de 2020...
Acordava cedo. Muito cedo. Quatro e meia, cinco da manhã. Pra nada. Acordava porque acordava. Banheiro, intenção de voltar pra cama, na volta um café, um cigarro, a intenção de voltar pra cama desaparecia na fumaça. Lia alguma coisa, pensava um monte de coisa, quase nada muito aproveitável, a lembrança de que existia uma cama já tinha se mudado para um passado distante. Ligava o computador. A cada dia uma coisa diferente: via um vídeo, pesquisava uma curiosidade, escrevia alguma coisa, ouvia rádio, lia as bobagens inconsequentes em alguma rede social, a cabeça viajava durante essas atividades e, de repente, as coisas estavam mais claras. Não na minha cabeça. As coisas estavam mais claras do lado de fora da minha janela. O dia começava a despontar. Nesse momento, com frequência, vinha à mente a lembrança de algo que parecia haver se perdido nas brumas do tempo e nos meandros das fake news: a intenção de voltar pra cama!
Ao clicar em “desligar” desfazia meu contato com o mundo virtual de relacionamentos vagos e informações imprecisas e reatava minha sempre turbulenta ligação com três velhos amigos invariavelmente desprezados: o travesseiro, o colchão e o cobertor. Sou de um tempo em que a gente se cobria em português mesmo e não com edredons. Ficava naquele estado intermediário entre o sono e a vigília, o corpo quase todo acreditando que estava em repouso mas os ouvidos dando uma vaga e distante idéia de que o mundo começava suas atividades. Pouco mais de uma hora depois, os ouvidos conseguiam convencer o resto de que estava na hora de fazer alguma coisa. Me levantava. Um café, um cigarro, computador ligado novamente e começava a trabalhar na parte burocrática do que faço pra ganhar a vida. Relatórios, programações, correções de traduções feitas por pessoas que até que se viram bem no inglês mas não sentem a mesma paixão pela correção no português, elaboração de escalas de trabalhos, envio dessas escalas e já estava na hora de começar a providenciar o almoço.
Cozinha. Temperos. Cebola, alho, pimenta do reino, bacon, páprica, colorau, tomates, feijão, arroz, carne, frango, alface, tomate, ovos... O mundo da gastronomia trivial, a elaboração do tão apreciado conjunto arroz-feijão-bife-batata-frita-salada ou do macarrão ou do prato especial que naquele dia deu vontade fazer.
Banho. Roupa limpa. Dar almoço pro neto. Comer. Trabalhar. Ganhar a vida. Exercer as atividades que exerço há décadas para garantir não só o almoço e o jantar, mas o gás com que prepará-los, a água usada pro cozimento ou para a lavagem de panelas e utensílios, a energia elétrica para ligar liquidificador, processador e outras maquininhas além da água quente pro banho e a luz pra que se possa enxergar o que se está fazendo. E, claro, um lugar com paredes e teto onde proteger todas essas coisas e as pessoas para as quais faço essas coisas.
Trabalhava a tarde inteira, um pedaço da noite, o trabalho terminava, voltava pra casa, passeava com o bicho, um serzinho peludo ao qual a família insiste em tratar como bichinho de pelúcia mas que eu e ele sabemos ser um cachorro, jantava, dividia minha atenção entre o computador e a família, entre amigos no whatsapp e a esposa, entre fãs no Facebook e as filhas e netos.
Todos iam se deitar, eu ficava acordado assistindo a alguma série ou filme ou vídeos de humoristas e de filósofos, nem sempre conseguia estabelecer a diferença, os olhos pesavam, a cabeça já não entendia direito, ria de Sartre e tecia considerações profundas sobre uma frase de Afonso Padilha. Era hora de me deitar.
E a rotina recomeçava. Pequenas variações a cada dia, mas, basicamente, essa era a minha vida até março de 2020.
Meu dia-a-dia atual pode ser descrito em menos tempo. Na verdade posso contar tudo em apenas quatro palavras: exatamente a mesma coisa!
Não sei se sou um valente ou se sou um irresponsável. Se prezo demais a vida que tenho com minha família ou se sou um ganancioso que não está nem aí pra nada. Na verdade, ainda não tive tempo de pensar de verdade no assunto. A vida não nos dá muito tempo para ponderações na hora de tomar decisões.
Estou bem, estou vivo, estou saudável até onde pode estar saudável um fumante com mais de sessenta anos.
Não sei se sou heroico ou inconsequente. Não faz diferença pra mim. Não estou interessado em me tornar nem uma coisa nem outra. Já dá muito trabalho ser simplesmente eu. O que sei é que se alguma coisa mudar nesse dia-a-dia, a parte mais prejudicada vai ser a do teto e a do almoço. Se meu dia-a-dia não for daquele jeito, não há como viver.
Alguns dizem que sou só um maluco, que posso morrer porque saio de casa pra ir comprar a cebola que acabou pra poder temperar o feijão ou porque, às vezes, vou ao local de trabalho fazer alguma coisa, mesmo com máscaras, luvas, álcool e todo o resto.
O que não percebem é que estão dizendo isso a um homem que, aos sessenta e seis anos, pode morrer mesmo sem fazer nada, trancado em casa, escondido embaixo da cama, tremendo de pavor se ouvir alguém espirrando no apartamento ao lado.
Um dia o poeta baiano ensinou e eu guardei. Sei que adiante, um dia, vou morrer. De susto, de bala ou vírus. Porque o vício... bom, esse parece que desistiu de tentar me matar.

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