Meu dia-a-dia
até março de 2020...
Acordava cedo.
Muito cedo. Quatro e meia, cinco da manhã. Pra nada. Acordava porque acordava. Banheiro,
intenção de voltar pra cama, na volta um café, um cigarro, a intenção de voltar
pra cama desaparecia na fumaça. Lia alguma coisa, pensava um monte de coisa,
quase nada muito aproveitável, a lembrança de que existia uma cama já tinha se
mudado para um passado distante. Ligava o computador. A cada dia uma coisa
diferente: via um vídeo, pesquisava uma curiosidade, escrevia alguma coisa,
ouvia rádio, lia as bobagens inconsequentes em alguma rede social, a cabeça
viajava durante essas atividades e, de repente, as coisas estavam mais claras.
Não na minha cabeça. As coisas estavam mais claras do lado de fora da minha
janela. O dia começava a despontar. Nesse momento, com frequência, vinha à
mente a lembrança de algo que parecia haver se perdido nas brumas do tempo e
nos meandros das fake news: a intenção de voltar pra cama!
Ao clicar em “desligar”
desfazia meu contato com o mundo virtual de relacionamentos vagos e informações
imprecisas e reatava minha sempre turbulenta ligação com três velhos amigos
invariavelmente desprezados: o travesseiro, o colchão e o cobertor. Sou de um
tempo em que a gente se cobria em português mesmo e não com edredons. Ficava
naquele estado intermediário entre o sono e a vigília, o corpo quase todo
acreditando que estava em repouso mas os ouvidos dando uma vaga e distante idéia
de que o mundo começava suas atividades. Pouco mais de uma hora depois, os
ouvidos conseguiam convencer o resto de que estava na hora de fazer alguma
coisa. Me levantava. Um café, um cigarro, computador ligado novamente e
começava a trabalhar na parte burocrática do que faço pra ganhar a vida.
Relatórios, programações, correções de traduções feitas por pessoas que até que
se viram bem no inglês mas não sentem a mesma paixão pela correção no
português, elaboração de escalas de trabalhos, envio dessas escalas e já estava
na hora de começar a providenciar o almoço.
Cozinha.
Temperos. Cebola, alho, pimenta do reino, bacon, páprica, colorau, tomates,
feijão, arroz, carne, frango, alface, tomate, ovos... O mundo da gastronomia
trivial, a elaboração do tão apreciado conjunto arroz-feijão-bife-batata-frita-salada ou do macarrão ou do prato especial que naquele dia deu vontade
fazer.
Banho. Roupa
limpa. Dar almoço pro neto. Comer. Trabalhar. Ganhar a vida. Exercer as
atividades que exerço há décadas para garantir não só o almoço e o jantar, mas
o gás com que prepará-los, a água usada pro cozimento ou para a lavagem de
panelas e utensílios, a energia elétrica para ligar liquidificador, processador
e outras maquininhas além da água quente pro banho e a luz pra que se possa
enxergar o que se está fazendo. E, claro, um lugar com paredes e teto onde
proteger todas essas coisas e as pessoas para as quais faço essas coisas.
Trabalhava a
tarde inteira, um pedaço da noite, o trabalho terminava, voltava pra casa,
passeava com o bicho, um serzinho peludo ao qual a família insiste em tratar
como bichinho de pelúcia mas que eu e ele sabemos ser um cachorro, jantava,
dividia minha atenção entre o computador e a família, entre amigos no whatsapp
e a esposa, entre fãs no Facebook e as filhas e netos.
Todos iam se
deitar, eu ficava acordado assistindo a alguma série ou filme ou vídeos de
humoristas e de filósofos, nem sempre conseguia estabelecer a diferença, os
olhos pesavam, a cabeça já não entendia direito, ria de Sartre e tecia
considerações profundas sobre uma frase de Afonso Padilha. Era hora de me
deitar.
E a rotina
recomeçava. Pequenas variações a cada dia, mas, basicamente, essa era a minha
vida até março de 2020.
Meu dia-a-dia
atual pode ser descrito em menos tempo. Na verdade posso contar tudo em apenas
quatro palavras: exatamente a mesma coisa!
Não sei se sou
um valente ou se sou um irresponsável. Se prezo demais a vida que tenho com
minha família ou se sou um ganancioso que não está nem aí pra nada. Na verdade,
ainda não tive tempo de pensar de verdade no assunto. A vida não nos dá muito
tempo para ponderações na hora de tomar decisões.
Estou bem, estou
vivo, estou saudável até onde pode estar saudável um fumante com mais de sessenta
anos.
Não sei se sou
heroico ou inconsequente. Não faz diferença pra mim. Não estou interessado em
me tornar nem uma coisa nem outra. Já dá muito trabalho ser simplesmente eu. O
que sei é que se alguma coisa mudar nesse dia-a-dia, a parte mais prejudicada
vai ser a do teto e a do almoço. Se meu dia-a-dia não for daquele jeito, não há
como viver.
Alguns dizem que
sou só um maluco, que posso morrer porque saio de casa pra ir comprar a cebola
que acabou pra poder temperar o feijão ou porque, às vezes, vou ao local de
trabalho fazer alguma coisa, mesmo com máscaras, luvas, álcool e todo o resto.
O que não
percebem é que estão dizendo isso a um homem que, aos sessenta e seis anos,
pode morrer mesmo sem fazer nada, trancado em casa, escondido embaixo da cama,
tremendo de pavor se ouvir alguém espirrando no apartamento ao lado.
Um dia o poeta
baiano ensinou e eu guardei. Sei que adiante, um dia, vou morrer. De susto, de
bala ou vírus. Porque o vício... bom, esse parece que desistiu de tentar me
matar.
Para não dizer nada, é necessário muito talento!Só você mesmo!
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