Como em todas as noites, Ataulfo
saiu do quarto e, sem acender as luzes da casa, foi ao banheiro, passou pela
cozinha, pegou um café, sentou-se à mesa da sala, e ali ficou por alguns
minutos, olhos meio fechados pra não perder o sono, caneca em uma mão, cigarro
aceso na outra, pensando na vida. Na penumbra. Iluminação, só a que vinha da
rua pela janela, bem pouca, difusa, um alívio para olhos cansados de um homem
com um inconfessado medo do escuro total.
Os olhos, por um instante, se
fecharam de vez. Sono. Nesse momento ele sentiu o toque. Parecia que alguém
havia tocado no braço dele com um dedo! Pensou em abrir os olhos, mas o medo o
deteve. E se ele visse alguma coisa assustadora tocando no braço dele? Manteve
os olhos fechados, tentando se convencer de que havia sido impressão, nada
havia tocado nele.
Histórias que ele mesmo contava
pra brincar com o neto ou com a filha vieram à sua mente. O apartamento era
velho. Muita gente deve ter vivido e morrido ali. E se algumas almas
atormentadas ainda permanecessem no local? A tubulação do prédio era antiga.
Lendas falavam de bichos jogados na privada, levados ao esgoto e que, em
contato com detritos tóxicos, teriam crescido, se tornado imensos e
ameaçadores. O que tocou nele? O dedo putrefato de um velho cadáver redivivo
que, em seguida, iria dilacerar sua garganta? A garra de um gigantesco pitu de
aquário prestes a se vingar de qualquer coisa com forma humana?
Medo. Às vezes explode numa
reação externa, braços e pernas reagem por instinto, empurrar a ameaça, sair
correndo pra longe dela são reações não planejadas. Às vezes implode em reações
internas. A corrente sanguínea se acelera, a respiração fica curta e rápida, os
batimentos cardíacos disparam. O corpo do Ataulfo escolheu a segunda opção.
Sem coragem de abrir os olhos,
ele sentiu que ia começar a respirar no ritmo do pavor. Não queria chamar
atenção do que quer que estivesse ali. Segurou a respiração. O coração
disparou. Se fosse um instrumento podia-se dizer que passou de duas batidas por
compasso pra quatro. Respiração ainda presa, coração a oito batidas por
compasso. Mas quando Ataulfo sentiu a mão tocando em seu rosto, cada compasso
passou a comportar dezesseis batidas! E acelerando! Até não aguentar mais. Um
instante antes do colapso final, Ataulfo abriu os olhos e entendeu tudo. Mas
era tarde. O coração não aguentou. Sua cabeça pendeu, a metade superior do
corpo desabou sobre a mesa da sala e os olhos de Ataulfo se fecharam pra
sempre.
No velório, a viúva chorosa
comentava com a cunhada: “Mas que ideia, passar mal na sala sem dizer nada até
morrer”. A filha, com o peito apertado, sofria a perda mas, lá no fundo, se
preocupava: “E agora, quem vai me ajudar quando eu precisar?”
Taufinho não estava no velório.
Fora levado para a casa de uma vizinha pra não ficar mais impressionado do que
estava. Já se sentia culpado demais: “Ele estava dormindo sentado. Podia cair.
Eu só encostei um dedo no braço dele, depois botei a mão de leve no rosto, sem
falar nada, pra não assustar o Tatá”.
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