sexta-feira, 30 de outubro de 2020

MEDO

 


    Ataulfo levantou-se ali pelas duas e meia da madrugada. Todos na casa dormindo. A esposa (“Se é ideia do Ataulfo, com certeza, vai dar em coisa errada”), a filha (“Pai, preciso de uma ajuda”) e o neto que não chama o avô de vovô e sim de Tatá. Ele foi batizado com o mesmo nome do avô, mas todo mundo o chama de Taufinho. Aos 65 anos, acordar no meio da noite era comum pro Ataulfo. Alguma coisa nele lutava incansavelmente pra evitar a incontinência urinária e fazia com que ele acordasse a tempo de ir ao banheiro. 

Como em todas as noites, Ataulfo saiu do quarto e, sem acender as luzes da casa, foi ao banheiro, passou pela cozinha, pegou um café, sentou-se à mesa da sala, e ali ficou por alguns minutos, olhos meio fechados pra não perder o sono, caneca em uma mão, cigarro aceso na outra, pensando na vida. Na penumbra. Iluminação, só a que vinha da rua pela janela, bem pouca, difusa, um alívio para olhos cansados de um homem com um inconfessado medo do escuro total.

Os olhos, por um instante, se fecharam de vez. Sono. Nesse momento ele sentiu o toque. Parecia que alguém havia tocado no braço dele com um dedo! Pensou em abrir os olhos, mas o medo o deteve. E se ele visse alguma coisa assustadora tocando no braço dele? Manteve os olhos fechados, tentando se convencer de que havia sido impressão, nada havia tocado nele.

Histórias que ele mesmo contava pra brincar com o neto ou com a filha vieram à sua mente. O apartamento era velho. Muita gente deve ter vivido e morrido ali. E se algumas almas atormentadas ainda permanecessem no local? A tubulação do prédio era antiga. Lendas falavam de bichos jogados na privada, levados ao esgoto e que, em contato com detritos tóxicos, teriam crescido, se tornado imensos e ameaçadores. O que tocou nele? O dedo putrefato de um velho cadáver redivivo que, em seguida, iria dilacerar sua garganta? A garra de um gigantesco pitu de aquário prestes a se vingar de qualquer coisa com forma humana?

Medo. Às vezes explode numa reação externa, braços e pernas reagem por instinto, empurrar a ameaça, sair correndo pra longe dela são reações não planejadas. Às vezes implode em reações internas. A corrente sanguínea se acelera, a respiração fica curta e rápida, os batimentos cardíacos disparam. O corpo do Ataulfo escolheu a segunda opção.

Sem coragem de abrir os olhos, ele sentiu que ia começar a respirar no ritmo do pavor. Não queria chamar atenção do que quer que estivesse ali. Segurou a respiração. O coração disparou. Se fosse um instrumento podia-se dizer que passou de duas batidas por compasso pra quatro. Respiração ainda presa, coração a oito batidas por compasso. Mas quando Ataulfo sentiu a mão tocando em seu rosto, cada compasso passou a comportar dezesseis batidas! E acelerando! Até não aguentar mais. Um instante antes do colapso final, Ataulfo abriu os olhos e entendeu tudo. Mas era tarde. O coração não aguentou. Sua cabeça pendeu, a metade superior do corpo desabou sobre a mesa da sala e os olhos de Ataulfo se fecharam pra sempre.

No velório, a viúva chorosa comentava com a cunhada: “Mas que ideia, passar mal na sala sem dizer nada até morrer”. A filha, com o peito apertado, sofria a perda mas, lá no fundo, se preocupava: “E agora, quem vai me ajudar quando eu precisar?”

Taufinho não estava no velório. Fora levado para a casa de uma vizinha pra não ficar mais impressionado do que estava. Já se sentia culpado demais: “Ele estava dormindo sentado. Podia cair. Eu só encostei um dedo no braço dele, depois botei a mão de leve no rosto, sem falar nada, pra não assustar o Tatá”.

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