segunda-feira, 5 de outubro de 2020

PUF

 


Fim de semana, mulher e filhos no sítio. Argeu inventou uma desculpa e ficou em casa. Um fim de semana em paz pra si mesmo. Discussões com a mulher, cobranças de filhos, barulho o tempo todo, televisão com programas de que não gostava, sempre irritado, sempre reclamando.

– Um dia eu sumo daqui! Desapareço! Viro fumaça! Puf!

A família até brincava com essas frases que Argeu repetia à exaustão por toda a vida sem jamais ter criado coragem de se afastar nem por um dia. Pelas costas se referiam a ele como o Doutor Puf.  Com a família fora, Argeu teria dois dias só pra ele. Dois dias em que ele bastaria a si mesmo.

Mas isso não durou nem mesmo o primeiro dia. A noite chegou, o silêncio entristecia, não ter o que fazer deprimia, não haver com quem conversar oprimia, nenhum motivo pra rir ou pra implicar aparecia. Foi se deitar. Insônia. A cama era grande demais só pra ele.

Ouviu o barulho. Uma porta bateu. Não sabia definir se havia sido em outro apartamento ou na sala. Tinha certeza de que havia fechado todas as portas antes de ir se deitar. Levantou-se, ainda no escuro, um tanto assustado e bateu a perna no móvel de cabeceira que se arrastou por alguns centímetros.

– Porcaria de movelzinho inútil – disse em voz alta, quase contente por ter com o que implicar.

Antes de abrir a porta do quarto, arriscou:

– Quem está aí?

Vagarosamente, com a coragem própria de alguém que está sozinho em uma casa às escuras, abriu a porta do quarto e olhou para o corredor. Teve a impressão de vislumbrar, em meio à escuridão, um fio de névoa no ar, como uma pequena fumaça de alguma coisa que estivera ardendo e se consumira rapidamente.

A curiosidade surgiu como a irmã maior e mais forte da pequena coragem e ele atravessou o corredor que terminava na sala. À esquerda, a porta que levava à cozinha. Lá havia outra porta, no lado oposto, dando para a área de serviço. Na outra ponta do corredor ficava o interruptor que, depois de acionado, trouxe luz ao ambiente e um corpo mais robusto para a coragem. Olhou de volta pro corredor e não viu nem sinal da tal fumaça. Talvez uma impressão causada pela visão prejudicada com a falta de iluminação.

Atravessou a sala, abriu a porta da esquerda, passou pela cozinha, abriu a porta da área de serviço, sempre acendendo luzes. Olhou tudo e não notou nada de diferente. A curiosidade foi se encolhendo enquanto a coragem tomava corpo.

– Que bobagem. Claro que foi a porta de outro apartamento que bateu. Amanhã vou falar com o síndico sobre esse pessoal barulhento.

Voltou apagando luzes. Chegou ao corredor, apagou a última luz e, nesse instante, percebeu que havia esquecido de fechar a porta da cozinha. Antes que ele pudesse se virar, o vento empurrou a porta que bateu com um estrondo.

No momento seguinte ouviu um barulho vindo do quarto. Como se um móvel pequeno tivesse sido levemente arrastado. Ouviu uma voz distante dizendo “Porcaria de movelzinho inútil”. Deu ainda um passo instintivo no corredor e ouviu a mesma voz, uma voz mais próxima, uma voz atrás da porta do quarto, uma voz bem familiar, sua própria voz: “Quem está aí?”

A porta começou a se abrir mas Argeu sabia que não veria mais nada. No instante seguinte, veio a certeza de que, antes que a porta se abrisse, Argeu deixaria de ver, sentir, pensar qualquer coisa...

Em seguida... Puf!

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