sábado, 29 de janeiro de 2022

EXTRA! EXTRA!

        Guerra, fome, paz, amor, ódio, trégua e tudo, afinal.

        No preto no branco, gritam alto as letras de um jornal.

Assim começava uma música que compus com meu amigo Carioca (o nome dele era Adilson, mas ninguém o chamava assim). Década de 70, éramos muito jovens e a música era para um festival estudantil. Naquele tempo havia muito disso. Escolas organizavam festivais dos quais participavam estudantes de todas as outras escolas.

Fazíamos músicas, escrevíamos textos, criávamos peças teatrais pelo simples fato de fazer. Pela necessidade de dizer alguma coisa. Eram tempos em que coisas precisavam ser ditas. Coisas boas e coisas ruins.

Decidimos fazer uma música que falasse de jornais, genericamente. Chamamos a música de Extra! Extra!

Eu gostava de ler notícias. O Carioca gostava mais do que eu. E muitos amigos nossos achavam bobagem adquirir as informações que vinham de jornais. Mas jornais e revistas eram, basicamente, o meio mais importante de informações sobre o mundo, sobre o país, sobre a cidade, sobre nós. Havia as TVs e o rádio, mas os jornais traziam as notícias mais esmiuçadas, traziam análises, controvérsias. Sim, havia controvérsias. Cada jornal tinha sua linha editorial, suas preferências oficiais e nós tínhamos a chance de ler dois jornais diferentes pra ter uma visão mais ampla do fato, com análises profissionais de vários lados.

Nossa música falava de tudo o que um jornal trazia até nós: a notícia local de um viaduto que caiu, a notícia mundial sobre a Guerra Fria entre União Soviética e Estados Unidos, sobre a guerra quentíssima entre Vietnã e Estados Unidos, a fofoca sobre quem está namorando quem e quem se separou de quem na TV e em Hollywood, palavras cruzadas, tirinhas de quadrinhos, horóscopo, previsão do tempo, novas doenças, novas curas, algumas crônicas maledicentes e outras bem humoradas. Tudo dentro daquelas páginas, diariamente. Você recebia tudo em um pacote só.

O tempo passou e atualmente as pessoas se informam mais através de redes sociais do que por qualquer outro meio. Parece ótimo, muito mais gente recebendo informações, as coisas chegando mais imediatamente, não é preciso esperar a edição de amanhã pra saber o que aconteceu na Síria há meia hora.

Os únicos problemas são as fontes e o algoritmo.

As fontes, em geral, são amigos que repassam coisas que foram enviadas por outros amigos que ouviram amigos dizerem. Nada profissional. Nada confiável. Mas há uma tendência a se acreditar em tudo que corrobore nossa opinião pré-formada sobre qualquer assunto.

O algoritmo percebe as coisas que você lê ou recebe e, em pouco tempo, você não tem acesso a mais nada que não seja aquela ideia, aquela opinião, aquele suposto fato. Isso gera a impressão de que estamos certos e de que a maioria está a nosso favor. Na maior parte das vezes isso não é verdade.

Já se sabia lá no passado que boa notícia não vendia jornal. Transpondo pra hoje, sabemos que boa notícia não gera clique. A diferença é que, no jornal, junto com a má notícia bombástica de primeira página, vinha uma porção de boas notícias lá dentro. Você acabava lendo tudo no pacote.

Hoje a má notícia gera um clique que abre o texto. As pessoas leem três ou quatro linhas e pronto. Já se acham informadas o suficiente pra emitir um comentário, único real motivo pra terem aberto a notícia: escrever algo raivoso com ares de quem tem informações extras que ninguém mais tem. Afinal, um primo que trabalha na empresa que fornece papel higiênico para aquela estatal soube de segredos e repassou no grupo da família do WhatsApp. Além disso, se houver algum link no corpo daquela notícia ruim, ele levará a outra notícia ruim. Não há mais o alívio de, no meio da confusão, se ler uma notícia agradável, uma tirinha engraçada ou mesmo aliviar a tensão com palavras cruzadas. A rede precisa da tensão em alta porque ela gera cliques e comentários. Gera acessos.

Me pego sendo velhinho. Pensando em outros tempos. Eram tempos melhores ou eu era jovem demais pra perceber como eram ruins? O mundo ficou tão mau assim que só temos jogadores acusados de estupro, compositores cancelando as próprias músicas, comentários idiotas sobre qualquer coisa, racistas, machistas, homofóbicos, antissemitas, xenofóbicos em geral, mortos na pandemia, mortos nas enchentes, mortos nos desabamentos, mortos em tiroteios, mortos na guerra, mortos no shopping, mortos, mortos, mortos? Não há mais notícias boas, agradáveis, divertidas?

Às vezes sinto falta do pacote completo que os jornais traziam. Eles ainda estão por aí. Mas capitulei. Me entreguei aos novos tempos. É difícil eu pegar um jornal pra ler atualmente.

Me lembro de como nossa música terminava:

        Há um mundo sem igual e a vida é bem real

        nas palavras de um jornal. 

        Sento e sinto uma vontade louca de reler meu jornal.