sábado, 29 de janeiro de 2022

EXTRA! EXTRA!

        Guerra, fome, paz, amor, ódio, trégua e tudo, afinal.

        No preto no branco, gritam alto as letras de um jornal.

Assim começava uma música que compus com meu amigo Carioca (o nome dele era Adilson, mas ninguém o chamava assim). Década de 70, éramos muito jovens e a música era para um festival estudantil. Naquele tempo havia muito disso. Escolas organizavam festivais dos quais participavam estudantes de todas as outras escolas.

Fazíamos músicas, escrevíamos textos, criávamos peças teatrais pelo simples fato de fazer. Pela necessidade de dizer alguma coisa. Eram tempos em que coisas precisavam ser ditas. Coisas boas e coisas ruins.

Decidimos fazer uma música que falasse de jornais, genericamente. Chamamos a música de Extra! Extra!

Eu gostava de ler notícias. O Carioca gostava mais do que eu. E muitos amigos nossos achavam bobagem adquirir as informações que vinham de jornais. Mas jornais e revistas eram, basicamente, o meio mais importante de informações sobre o mundo, sobre o país, sobre a cidade, sobre nós. Havia as TVs e o rádio, mas os jornais traziam as notícias mais esmiuçadas, traziam análises, controvérsias. Sim, havia controvérsias. Cada jornal tinha sua linha editorial, suas preferências oficiais e nós tínhamos a chance de ler dois jornais diferentes pra ter uma visão mais ampla do fato, com análises profissionais de vários lados.

Nossa música falava de tudo o que um jornal trazia até nós: a notícia local de um viaduto que caiu, a notícia mundial sobre a Guerra Fria entre União Soviética e Estados Unidos, sobre a guerra quentíssima entre Vietnã e Estados Unidos, a fofoca sobre quem está namorando quem e quem se separou de quem na TV e em Hollywood, palavras cruzadas, tirinhas de quadrinhos, horóscopo, previsão do tempo, novas doenças, novas curas, algumas crônicas maledicentes e outras bem humoradas. Tudo dentro daquelas páginas, diariamente. Você recebia tudo em um pacote só.

O tempo passou e atualmente as pessoas se informam mais através de redes sociais do que por qualquer outro meio. Parece ótimo, muito mais gente recebendo informações, as coisas chegando mais imediatamente, não é preciso esperar a edição de amanhã pra saber o que aconteceu na Síria há meia hora.

Os únicos problemas são as fontes e o algoritmo.

As fontes, em geral, são amigos que repassam coisas que foram enviadas por outros amigos que ouviram amigos dizerem. Nada profissional. Nada confiável. Mas há uma tendência a se acreditar em tudo que corrobore nossa opinião pré-formada sobre qualquer assunto.

O algoritmo percebe as coisas que você lê ou recebe e, em pouco tempo, você não tem acesso a mais nada que não seja aquela ideia, aquela opinião, aquele suposto fato. Isso gera a impressão de que estamos certos e de que a maioria está a nosso favor. Na maior parte das vezes isso não é verdade.

Já se sabia lá no passado que boa notícia não vendia jornal. Transpondo pra hoje, sabemos que boa notícia não gera clique. A diferença é que, no jornal, junto com a má notícia bombástica de primeira página, vinha uma porção de boas notícias lá dentro. Você acabava lendo tudo no pacote.

Hoje a má notícia gera um clique que abre o texto. As pessoas leem três ou quatro linhas e pronto. Já se acham informadas o suficiente pra emitir um comentário, único real motivo pra terem aberto a notícia: escrever algo raivoso com ares de quem tem informações extras que ninguém mais tem. Afinal, um primo que trabalha na empresa que fornece papel higiênico para aquela estatal soube de segredos e repassou no grupo da família do WhatsApp. Além disso, se houver algum link no corpo daquela notícia ruim, ele levará a outra notícia ruim. Não há mais o alívio de, no meio da confusão, se ler uma notícia agradável, uma tirinha engraçada ou mesmo aliviar a tensão com palavras cruzadas. A rede precisa da tensão em alta porque ela gera cliques e comentários. Gera acessos.

Me pego sendo velhinho. Pensando em outros tempos. Eram tempos melhores ou eu era jovem demais pra perceber como eram ruins? O mundo ficou tão mau assim que só temos jogadores acusados de estupro, compositores cancelando as próprias músicas, comentários idiotas sobre qualquer coisa, racistas, machistas, homofóbicos, antissemitas, xenofóbicos em geral, mortos na pandemia, mortos nas enchentes, mortos nos desabamentos, mortos em tiroteios, mortos na guerra, mortos no shopping, mortos, mortos, mortos? Não há mais notícias boas, agradáveis, divertidas?

Às vezes sinto falta do pacote completo que os jornais traziam. Eles ainda estão por aí. Mas capitulei. Me entreguei aos novos tempos. É difícil eu pegar um jornal pra ler atualmente.

Me lembro de como nossa música terminava:

        Há um mundo sem igual e a vida é bem real

        nas palavras de um jornal. 

        Sento e sinto uma vontade louca de reler meu jornal.

 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

SEIMOR PLOOTH E O ATROPELAMENTO SEM CARRO

    – Plooth. Seimor Plooth. Investigador particular.
    O Sargento Anacleto, doze anos de polícia, olhou pro baixinho forte, corpo treinado em academia e, enquanto pegava o cartão oferecido pelo mini atleta, não acreditou no nome. Pediu um documento e verificou que suas suspeitas tinham fundamento. O baixinho tinha uma cara brasileira demais pra ter nome estrangeiro. Na verdade, se chamava Analgésio Picanso.
    – Adotei um nome de guerra, sargento – explicou em voz baixa o detetive. – Na escola só me chamavam de Anal e a redução do sobrenome também não ajudava muito.
    O sargento achou graça, mas não gostou do som americano do nome inventado. Só o soldado Ataíde entendeu o anagrama de dois nomes, mas isso só foi conversado muito depois do evento.
    Seimor continuou com sua solução do crime.
    – Como eu ia dizendo, sargento, o caso está resolvido.
    – Como assim, caso resolvido? Isso foi um acidente, não foi? Um atropelamento?
    – O marido continua não conseguindo falar. Só chora. – Ataíde informou de onde estava, uns quatro ou cinco passos de distância.
    Um senhor de uns setenta anos chorava e só conseguia balbuciar “Bateu nela... Fugiu... Bateu nela...”
    Domingo. Comecinho da noite. Esquina da rua Eduardo Prado com a rua Barra Funda. Dia e hora de quase nenhum movimento. Rua deserta. No chão, caída ao longo da calçada, com as pernas estendidas no asfalto, uma senhora com idade próxima à do homem. Um vestido simples com alças estreitas presas aos ombros, um sapato com salto baixo em um dos pés. O outro sapato a pouca distância do corpo, fora da calçada. Uma bolsa média, meio aberta, ainda presa pela alça ao braço esquerdo. Os cabelos seriam totalmente brancos se não estivessem tingidos de vermelho pelo sangue que fluía da cabeça e se espalhava pela sarjeta.
    – É claramente mentira, sargento. Basta usar um pouco as pequeninas células cinzentas pra perceber o que houve.
    O soldado Ataíde teve sua primeira pista quanto ao nome do detetive nesse momento. A segunda veio um pouco mais tarde.
    – Bateu nela e fugiu... É o que o marido diz. Mas onde está o carro? E onde estão as marcas no asfalto? Vidro quebrado de um farol ou de uma lanterna? Nada! O ferimento é na cabeça. Além dele, existe apenas esse pequeno hematoma no ombro. Muito pequeno pra ter sido feito por um automóvel. Basta usar a observação pra ver que não houve atropelamento. Então o marido está mentindo. E só os culpados mentem. Eles devem ter brigado, ele deu um soco no ombro dela, daí o hematoma. A mulher perdeu o equilíbrio, caiu sentada com as pernas pra fora da calçada. Ele veio por trás e bateu na cabeça dela com alguma coisa pesada e a matou. Agora só falta ao senhor e à sua equipe encontrar o que foi usado como arma. Não deve estar longe porque quando eu passei e parei, tinha acabado de acontecer. Fui eu que liguei pra vocês.
    – Mas olha só aquele pobre senhor. Está em desespero. O que você está dizendo é muito improvável.
    – Sargento, um atropelamento é impossível. E depois que eliminamos o impossível, o que sobra, mesmo que seja improvável, é a verdade.
    Foi a segunda pista pro Ataíde, grande leitor de livros de mistério.
  Sargento Anacleto, claro, não levou a sério nada do que Seimor disse, mas agradeceu a colaboração, isolou a área onde estava o corpo e pediu pra levarem o marido pra outro lugar onde ele pudesse se acalmar e contar o que realmente aconteceu. Seimor se despediu dizendo ao sargento que, caso fosse comentar sua solução do crime, não deixasse de soletrar seu nome de guerra direito.
    – Seimor Plooth. Como está no cartão. Vai ser bom pros negócios!
    Não muito longe dali, na avenida Rio Branco, um jovem de uns vinte anos encostava sua bicicleta e entregava cinco celulares pra um receptador. É uma prática na região. As bicicletas passam em velocidade por pessoas incautas que falam ao celular. Num gesto preciso e rápido, arrancam o celular da mão da vítima e seguem velozes pra longe. Ninguém consegue pegá-los.
    – Consegui esses hoje. O último foi maluco, tá ligado? A véia tava na beira da calçada falando no celular. Quando eu tava chegando, ela deu um passo, acho que ia atravessar, tá ligado? O guidão da bike bateu no ombro dela, ela girou que nem um pião e caiu de cabeça na guia. Eu peguei o celular no giro, tá ligado? Esse devia valer mais!
    O sargento Anacleto chegou à conclusão real depois de conversar com o marido que estava uns passos atrás da esposa enquanto ela conversava com o filho ao celular.
    Seimor Plooth ainda acredita que desvendou mais um crime misterioso da grande e fria metrópole. Tudo estava muito claro para ele. 
    – Elementar, mon ami! 

terça-feira, 6 de abril de 2021

CRIATURAS

 

Todas as noites, ali pelas três e meia da madrugada, Alceu acordava, tomava um
café, acendia um cigarro e se sentava à mesa da sala para ler um pouco. A mesa para seis pessoas ficava numa ponta da sala. Sentado ali, Alceu via o sofá, as poltronas, a TV e, na parede oposta, a janela.

Naquela noite, sobre a mesa, havia restos do jantar. A família combinou de recolher e limpar tudo logo pela manhã. Alguns copos contendo refrigerantes, outros restos de cerveja. Uma caixa de medicamentos de onde a esposa de Alceu havia caçado o remédio costumeiro para sua cólica mensal completava a bagunça sobre a mesa. Alceu afastou dois pratos e um copo pra conseguir um pequeno espaço pro cinzeiro e pro livro.

Ao levantar a cabeça, viu a coisa vindo pela janela. Era arredondada, do tamanho de uma bola de futebol. Por toda a superfície da criatura esférica havia protuberâncias. Pequenas trombas com o que pareciam ventosas nas pontas. A criatura se movia na direção da mesa emitindo um som pelas trombas que lembrava o ruído que se faz ao sugar o último gole de alguma coisa através de um canudinho.

O susto foi substituído por um grande medo quando viu que não era uma criatura só. Várias invadiram a sala. Todas fazendo aquele barulho. Todas indo em direção à mesa onde ele estava! Alceu começou a sentir falta de ar.

O medo virou pânico quando percebeu que o barulho produzido era realmente de sucção. As criaturas estavam sugando o ar da sala. A falta de ar não era provocada pelo medo. O ar estava mesmo acabando!

Alceu tentou fugir mas se moveu com lentidão, como se estivesse nadando em gelatina. As criaturas começaram a subir na mesa. Alceu quase não respirava mais, a sensação era de que não havia mais ar à sua volta. O peso das criaturas sobre a borda fizeram a mesa virar. Restos de arroz, fragmentos de carne, vegetais crus e cozidos foram despejados junto com guaraná, cerveja, analgésicos, antibióticos, antipiréticos, cremes, xaropes, tudo o que havia na caixa de remédios. As criaturas retrocederam alguns centímetros. Alceu notou a reação e, mesmo com movimentos lentos, quase rastejando, chegou ao ponto do chão onde tudo estava misturado. Foi pegando itens, dois a dois, três a três, estirando os braços, até que acertou uma combinação que fez as criaturas se afastarem mais um pouco. Fez um bolinho com aqueles itens e atirou sobre uma delas. A bola cheia de pequenas trombas emitiu um silvo e explodiu! Alceu juntou novamente aqueles ingredientes, uns sólidos, outras líquidos, lançou sobre outra criatura e nova explosão se produziu! Cada ítem daquele devia conter alguma coisa que, combinada com os outros, eliminava por completo os invasores.

Nesse instante, Alceu sentiu uma dor intensa começar pela sua boca, passar pela garganta e atingir seu peito. De repente havia ar no mundo. Ele estava respirando!

*****

A enfermeira não ouviu. Quem informou ao médico foi a técnica em enfermagem que a auxiliava. O médico não levou a sério. Era impossível que Alceu tivesse falado alguma coisa antes de ser intubado. Estava extremamente sedado e sob efeito de bloqueadores neuromusculares. Coma induzido. Mas ela jura que ouviu o paciente do leito 19 balbuciar um segundo antes de introduzirem o tubo.

Alceu foi curado. Voltou pra casa. Não se lembrava de nada. Nem do sofrimento, nem dos remédios, nem do tubo, nem mesmo de sonhos ou visões que teve. Lamentavelmente, também não se lembrava da combinação certa que poderia ser uma pista pra acabar com o pesadelo dos que estavam acordados. Nem se lembrava de ter murmurado quando a técnica em enfermagem se aproximou dele:

- É assim que eles morrem!

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

CARA DE FESTA



Ano Novo tem cara de festa.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro tem cara de festa da vitória. Eu e ele conseguimos completar mais uma maratona que durou 12 meses.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro, em tempos como esses em que quase todos os noticiários informam que temos duzentos mil mortos pelo mal do momento e poucos noticiam um milhão e trezentos mil mortos por todas as outras coisas, um Ano Novo assim mostra, num primeiro momento, a cara de uma eufórica festa da vitória, mas não de uma jornada esportiva. Vitória em uma guerra. O prêmio não é uma taça. O prêmio é estar vivo! Mas isso é num primeiro momento.

Logo em seguida, como em todo começo de ano, nos entregamos a reflexões. Desta vez não só quanto à necessidade de parar de fumar na semana que vem ou de começar academia e dieta na próxima segunda.

Primeiro alguns pensam que muita gente morreu, mas muita gente nasceu. Praticamente ninguém comenta os três milhões de crianças que nasceram em 2020. Gente nascendo nunca mais foi notícia depois do suspeitíssimo interesse de Herodes pelo assunto no ano 1. Gente morrendo sempre gera comoção e uma ânsia por informações gentilmente oferecidas por emissoras, blogs, sites, vídeos, jornais, revistas e qualquer outro meio através do qual possamos satisfazer uma temporária morbidez que nos acomete ao sabermos de males que estão atingindo os outros e não a nós.

A percepção de que pode nos atingir também a qualquer momento começa a nos causar uma preocupação seletiva. Ela faz com que tenhamos muito medo daquele mal fartamente divulgado e nos esqueçamos por completo de todos os outros males que podem nos matar e que continuam em vigência. Não precisamos mais olhar pros dois lados da rua antes de atravessar desde que estejamos usando máscara.

Ano Novo pra quem, como eu, faz aniversário em janeiro, em tempos como esses, também é motivo para orgulho. Mesmo com tudo acima de tudo e tanta coisa acima de todos, apesar do que nos acometeu, nos preocupou, nos entristeceu, nos empobreceu física, econômica e emocionalmente, nos arrasou neste ano que termina, ainda assim estamos aqui. Vivos. Em pé. Resistindo. Principalmente acreditando.

Continuamos a acreditar que as coisas podem mudar e que, ao mudar, farão isso pra melhor. Por acreditar, até nos movemos em direção a isso, tentamos ajudar essa mudança a acontecer. Mesmo sem saber, colaboramos para que haja mudanças. E acreditar é o embrião e o alimento da esperança.

Sendo assim, como esperança é o que temos, que se espalhe a esperança de que 2021 seja um ano de soluções, de resoluções, de tomadas de posição, de atitudes e, principalmente, um ano de vida! Que seja justificada a esperança de que essa causa mais noticiosa de mortes seja debelada, sim, mas que as outras, a bala perdida, o trânsito, os bombardeios pelo mundo, os milhares de doenças fatais, o enfarto fulminante, a poluição, o câncer, o desmatamento, a violência, a AIDS, os preconceitos, que tudo isso, se não desaparecer, pelo menos se reduza.

Que este novo ano não precise, lá no fim, de uma sensação de guerra vencida.

Que este novo ano, lá no fim, não dê troféu a ninguém porque não houve uma maratona.

Que este novo ano, enfim, apenas tenha cara de festa.

Todos os dias.

Mesmo pra quem não faz aniversário em janeiro.

domingo, 29 de novembro de 2020

ORIGEM

 


        Aí ele acordou...

Levantou-se e foi até a sala. Viu copos e pratos sobre a mesa, restos de pernil, algumas taças com vestígios de mousse de manga. Em volta da árvore enfeitada, indícios do que tinha sido a noite anterior, a alegria das crianças rasgando em tiras papéis de presentes. A festa de Natal havia passado.

Na cozinha, colado na garrafa térmica a qual todos sabiam que ele iria procurar assim que acordasse em busca do reconfortante gole de café que, junto com o subsequente primeiro cigarro do dia, traria equilíbrio ao pobre cérebro confuso depois de uma festa, havia um bilhete: “Não quis acordar você. Fui passear no parque com as crianças. Voltaremos depois do almoço.”

O café e o cigarro não ajudaram na confusão mental que o bilhete causou. No parque? Com as crianças? E o isolamento? E a pandemia?

Ligou a TV e as notícias deram um arremate na perplexidade. Falava-se de política, de esporte, de eventos pós-natal, mas nada sobre Covid.

Após o estranhamento inicial, passou a prestar atenção ao que era dito. Em um canal noticiaram as inaugurações de um novo hospital e três novas escolas marcadas para dia dois de janeiro. Em outro, um programa de debate político com pessoas que ele não conhecia mas que, claramente, eram de espectros bem opostos. Mas ninguém alterava a voz, discutiam-se ideias e propostas. Mudou de canal e, em um programa de variedades, comentava-se sobre o Natal em um bairro mais afastado, onde prefeitura e empresas da cidade se aliaram para prover uma ceia e presentes pras crianças cujas famílias eram as últimas que ainda não tinham entrado no novo programa de empregos, coisa que, pelo que estavam dizendo, ocorreria, no máximo, na metade de janeiro. Em um canal religioso, viu, atônito, um pastor evangélico, um monge budista, um hindu, um padre, um rabino, um imã e um babalaorixá deliberando em que pontos e a que nível eles poderiam colaborar uns com os outros em causas sociais.

Sem saber o que estava acontecendo, acessou a Internet e ali viu a criação de postos de saúde, a ampliação de transportes públicos, anúncios de medicamentos a preços bem acessíveis contra males cuja cura nem se antevia.

Um pensamento maluco surgiu: “Por quanto tempo eu dormi?”.  Mesmo se achando idiota, foi ver a data. No mesmo instante começou um pronunciamento de fim de ano do Presidente da República.

“Não é possível... Estamos em...” e, antes de terminar o pensamento começou o pronunciamento. “E o presidente é o...”

Aí ele acordou.

Os restos da festa eram os mesmos, mas a esposa e os filhos estavam pela casa esperando que ele levantasse pra irem visitar a tia. Iam levar o presente dela. De carro. Todos de máscara. Estavam seguros.

Ele tomou o café, fumou o cigarro, colocou a máscara e saíram. Ele ainda estava um pouco confuso, mas, por baixo da máscara havia um sorriso. Um sorriso meio esperançoso. Tudo tinha sido tão real que poderia muito bem acontecer. As coisas podiam ficar como ele viu no sonho que teve. Ou não tinha sido um sonho e agora é que ele estava sonhando? E se tivessem sido dois sonhos e a verdade fosse uma terceira opção?

Aí ele acordou.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

MEDO

 


    Ataulfo levantou-se ali pelas duas e meia da madrugada. Todos na casa dormindo. A esposa (“Se é ideia do Ataulfo, com certeza, vai dar em coisa errada”), a filha (“Pai, preciso de uma ajuda”) e o neto que não chama o avô de vovô e sim de Tatá. Ele foi batizado com o mesmo nome do avô, mas todo mundo o chama de Taufinho. Aos 65 anos, acordar no meio da noite era comum pro Ataulfo. Alguma coisa nele lutava incansavelmente pra evitar a incontinência urinária e fazia com que ele acordasse a tempo de ir ao banheiro. 

Como em todas as noites, Ataulfo saiu do quarto e, sem acender as luzes da casa, foi ao banheiro, passou pela cozinha, pegou um café, sentou-se à mesa da sala, e ali ficou por alguns minutos, olhos meio fechados pra não perder o sono, caneca em uma mão, cigarro aceso na outra, pensando na vida. Na penumbra. Iluminação, só a que vinha da rua pela janela, bem pouca, difusa, um alívio para olhos cansados de um homem com um inconfessado medo do escuro total.

Os olhos, por um instante, se fecharam de vez. Sono. Nesse momento ele sentiu o toque. Parecia que alguém havia tocado no braço dele com um dedo! Pensou em abrir os olhos, mas o medo o deteve. E se ele visse alguma coisa assustadora tocando no braço dele? Manteve os olhos fechados, tentando se convencer de que havia sido impressão, nada havia tocado nele.

Histórias que ele mesmo contava pra brincar com o neto ou com a filha vieram à sua mente. O apartamento era velho. Muita gente deve ter vivido e morrido ali. E se algumas almas atormentadas ainda permanecessem no local? A tubulação do prédio era antiga. Lendas falavam de bichos jogados na privada, levados ao esgoto e que, em contato com detritos tóxicos, teriam crescido, se tornado imensos e ameaçadores. O que tocou nele? O dedo putrefato de um velho cadáver redivivo que, em seguida, iria dilacerar sua garganta? A garra de um gigantesco pitu de aquário prestes a se vingar de qualquer coisa com forma humana?

Medo. Às vezes explode numa reação externa, braços e pernas reagem por instinto, empurrar a ameaça, sair correndo pra longe dela são reações não planejadas. Às vezes implode em reações internas. A corrente sanguínea se acelera, a respiração fica curta e rápida, os batimentos cardíacos disparam. O corpo do Ataulfo escolheu a segunda opção.

Sem coragem de abrir os olhos, ele sentiu que ia começar a respirar no ritmo do pavor. Não queria chamar atenção do que quer que estivesse ali. Segurou a respiração. O coração disparou. Se fosse um instrumento podia-se dizer que passou de duas batidas por compasso pra quatro. Respiração ainda presa, coração a oito batidas por compasso. Mas quando Ataulfo sentiu a mão tocando em seu rosto, cada compasso passou a comportar dezesseis batidas! E acelerando! Até não aguentar mais. Um instante antes do colapso final, Ataulfo abriu os olhos e entendeu tudo. Mas era tarde. O coração não aguentou. Sua cabeça pendeu, a metade superior do corpo desabou sobre a mesa da sala e os olhos de Ataulfo se fecharam pra sempre.

No velório, a viúva chorosa comentava com a cunhada: “Mas que ideia, passar mal na sala sem dizer nada até morrer”. A filha, com o peito apertado, sofria a perda mas, lá no fundo, se preocupava: “E agora, quem vai me ajudar quando eu precisar?”

Taufinho não estava no velório. Fora levado para a casa de uma vizinha pra não ficar mais impressionado do que estava. Já se sentia culpado demais: “Ele estava dormindo sentado. Podia cair. Eu só encostei um dedo no braço dele, depois botei a mão de leve no rosto, sem falar nada, pra não assustar o Tatá”.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

PUF

 


Fim de semana, mulher e filhos no sítio. Argeu inventou uma desculpa e ficou em casa. Um fim de semana em paz pra si mesmo. Discussões com a mulher, cobranças de filhos, barulho o tempo todo, televisão com programas de que não gostava, sempre irritado, sempre reclamando.

– Um dia eu sumo daqui! Desapareço! Viro fumaça! Puf!

A família até brincava com essas frases que Argeu repetia à exaustão por toda a vida sem jamais ter criado coragem de se afastar nem por um dia. Pelas costas se referiam a ele como o Doutor Puf.  Com a família fora, Argeu teria dois dias só pra ele. Dois dias em que ele bastaria a si mesmo.

Mas isso não durou nem mesmo o primeiro dia. A noite chegou, o silêncio entristecia, não ter o que fazer deprimia, não haver com quem conversar oprimia, nenhum motivo pra rir ou pra implicar aparecia. Foi se deitar. Insônia. A cama era grande demais só pra ele.

Ouviu o barulho. Uma porta bateu. Não sabia definir se havia sido em outro apartamento ou na sala. Tinha certeza de que havia fechado todas as portas antes de ir se deitar. Levantou-se, ainda no escuro, um tanto assustado e bateu a perna no móvel de cabeceira que se arrastou por alguns centímetros.

– Porcaria de movelzinho inútil – disse em voz alta, quase contente por ter com o que implicar.

Antes de abrir a porta do quarto, arriscou:

– Quem está aí?

Vagarosamente, com a coragem própria de alguém que está sozinho em uma casa às escuras, abriu a porta do quarto e olhou para o corredor. Teve a impressão de vislumbrar, em meio à escuridão, um fio de névoa no ar, como uma pequena fumaça de alguma coisa que estivera ardendo e se consumira rapidamente.

A curiosidade surgiu como a irmã maior e mais forte da pequena coragem e ele atravessou o corredor que terminava na sala. À esquerda, a porta que levava à cozinha. Lá havia outra porta, no lado oposto, dando para a área de serviço. Na outra ponta do corredor ficava o interruptor que, depois de acionado, trouxe luz ao ambiente e um corpo mais robusto para a coragem. Olhou de volta pro corredor e não viu nem sinal da tal fumaça. Talvez uma impressão causada pela visão prejudicada com a falta de iluminação.

Atravessou a sala, abriu a porta da esquerda, passou pela cozinha, abriu a porta da área de serviço, sempre acendendo luzes. Olhou tudo e não notou nada de diferente. A curiosidade foi se encolhendo enquanto a coragem tomava corpo.

– Que bobagem. Claro que foi a porta de outro apartamento que bateu. Amanhã vou falar com o síndico sobre esse pessoal barulhento.

Voltou apagando luzes. Chegou ao corredor, apagou a última luz e, nesse instante, percebeu que havia esquecido de fechar a porta da cozinha. Antes que ele pudesse se virar, o vento empurrou a porta que bateu com um estrondo.

No momento seguinte ouviu um barulho vindo do quarto. Como se um móvel pequeno tivesse sido levemente arrastado. Ouviu uma voz distante dizendo “Porcaria de movelzinho inútil”. Deu ainda um passo instintivo no corredor e ouviu a mesma voz, uma voz mais próxima, uma voz atrás da porta do quarto, uma voz bem familiar, sua própria voz: “Quem está aí?”

A porta começou a se abrir mas Argeu sabia que não veria mais nada. No instante seguinte, veio a certeza de que, antes que a porta se abrisse, Argeu deixaria de ver, sentir, pensar qualquer coisa...

Em seguida... Puf!