terça-feira, 6 de abril de 2021

CRIATURAS

 

Todas as noites, ali pelas três e meia da madrugada, Alceu acordava, tomava um
café, acendia um cigarro e se sentava à mesa da sala para ler um pouco. A mesa para seis pessoas ficava numa ponta da sala. Sentado ali, Alceu via o sofá, as poltronas, a TV e, na parede oposta, a janela.

Naquela noite, sobre a mesa, havia restos do jantar. A família combinou de recolher e limpar tudo logo pela manhã. Alguns copos contendo refrigerantes, outros restos de cerveja. Uma caixa de medicamentos de onde a esposa de Alceu havia caçado o remédio costumeiro para sua cólica mensal completava a bagunça sobre a mesa. Alceu afastou dois pratos e um copo pra conseguir um pequeno espaço pro cinzeiro e pro livro.

Ao levantar a cabeça, viu a coisa vindo pela janela. Era arredondada, do tamanho de uma bola de futebol. Por toda a superfície da criatura esférica havia protuberâncias. Pequenas trombas com o que pareciam ventosas nas pontas. A criatura se movia na direção da mesa emitindo um som pelas trombas que lembrava o ruído que se faz ao sugar o último gole de alguma coisa através de um canudinho.

O susto foi substituído por um grande medo quando viu que não era uma criatura só. Várias invadiram a sala. Todas fazendo aquele barulho. Todas indo em direção à mesa onde ele estava! Alceu começou a sentir falta de ar.

O medo virou pânico quando percebeu que o barulho produzido era realmente de sucção. As criaturas estavam sugando o ar da sala. A falta de ar não era provocada pelo medo. O ar estava mesmo acabando!

Alceu tentou fugir mas se moveu com lentidão, como se estivesse nadando em gelatina. As criaturas começaram a subir na mesa. Alceu quase não respirava mais, a sensação era de que não havia mais ar à sua volta. O peso das criaturas sobre a borda fizeram a mesa virar. Restos de arroz, fragmentos de carne, vegetais crus e cozidos foram despejados junto com guaraná, cerveja, analgésicos, antibióticos, antipiréticos, cremes, xaropes, tudo o que havia na caixa de remédios. As criaturas retrocederam alguns centímetros. Alceu notou a reação e, mesmo com movimentos lentos, quase rastejando, chegou ao ponto do chão onde tudo estava misturado. Foi pegando itens, dois a dois, três a três, estirando os braços, até que acertou uma combinação que fez as criaturas se afastarem mais um pouco. Fez um bolinho com aqueles itens e atirou sobre uma delas. A bola cheia de pequenas trombas emitiu um silvo e explodiu! Alceu juntou novamente aqueles ingredientes, uns sólidos, outras líquidos, lançou sobre outra criatura e nova explosão se produziu! Cada ítem daquele devia conter alguma coisa que, combinada com os outros, eliminava por completo os invasores.

Nesse instante, Alceu sentiu uma dor intensa começar pela sua boca, passar pela garganta e atingir seu peito. De repente havia ar no mundo. Ele estava respirando!

*****

A enfermeira não ouviu. Quem informou ao médico foi a técnica em enfermagem que a auxiliava. O médico não levou a sério. Era impossível que Alceu tivesse falado alguma coisa antes de ser intubado. Estava extremamente sedado e sob efeito de bloqueadores neuromusculares. Coma induzido. Mas ela jura que ouviu o paciente do leito 19 balbuciar um segundo antes de introduzirem o tubo.

Alceu foi curado. Voltou pra casa. Não se lembrava de nada. Nem do sofrimento, nem dos remédios, nem do tubo, nem mesmo de sonhos ou visões que teve. Lamentavelmente, também não se lembrava da combinação certa que poderia ser uma pista pra acabar com o pesadelo dos que estavam acordados. Nem se lembrava de ter murmurado quando a técnica em enfermagem se aproximou dele:

- É assim que eles morrem!

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