segunda-feira, 8 de novembro de 2021

SEIMOR PLOOTH E O ATROPELAMENTO SEM CARRO

    – Plooth. Seimor Plooth. Investigador particular.
    O Sargento Anacleto, doze anos de polícia, olhou pro baixinho forte, corpo treinado em academia e, enquanto pegava o cartão oferecido pelo mini atleta, não acreditou no nome. Pediu um documento e verificou que suas suspeitas tinham fundamento. O baixinho tinha uma cara brasileira demais pra ter nome estrangeiro. Na verdade, se chamava Analgésio Picanso.
    – Adotei um nome de guerra, sargento – explicou em voz baixa o detetive. – Na escola só me chamavam de Anal e a redução do sobrenome também não ajudava muito.
    O sargento achou graça, mas não gostou do som americano do nome inventado. Só o soldado Ataíde entendeu o anagrama de dois nomes, mas isso só foi conversado muito depois do evento.
    Seimor continuou com sua solução do crime.
    – Como eu ia dizendo, sargento, o caso está resolvido.
    – Como assim, caso resolvido? Isso foi um acidente, não foi? Um atropelamento?
    – O marido continua não conseguindo falar. Só chora. – Ataíde informou de onde estava, uns quatro ou cinco passos de distância.
    Um senhor de uns setenta anos chorava e só conseguia balbuciar “Bateu nela... Fugiu... Bateu nela...”
    Domingo. Comecinho da noite. Esquina da rua Eduardo Prado com a rua Barra Funda. Dia e hora de quase nenhum movimento. Rua deserta. No chão, caída ao longo da calçada, com as pernas estendidas no asfalto, uma senhora com idade próxima à do homem. Um vestido simples com alças estreitas presas aos ombros, um sapato com salto baixo em um dos pés. O outro sapato a pouca distância do corpo, fora da calçada. Uma bolsa média, meio aberta, ainda presa pela alça ao braço esquerdo. Os cabelos seriam totalmente brancos se não estivessem tingidos de vermelho pelo sangue que fluía da cabeça e se espalhava pela sarjeta.
    – É claramente mentira, sargento. Basta usar um pouco as pequeninas células cinzentas pra perceber o que houve.
    O soldado Ataíde teve sua primeira pista quanto ao nome do detetive nesse momento. A segunda veio um pouco mais tarde.
    – Bateu nela e fugiu... É o que o marido diz. Mas onde está o carro? E onde estão as marcas no asfalto? Vidro quebrado de um farol ou de uma lanterna? Nada! O ferimento é na cabeça. Além dele, existe apenas esse pequeno hematoma no ombro. Muito pequeno pra ter sido feito por um automóvel. Basta usar a observação pra ver que não houve atropelamento. Então o marido está mentindo. E só os culpados mentem. Eles devem ter brigado, ele deu um soco no ombro dela, daí o hematoma. A mulher perdeu o equilíbrio, caiu sentada com as pernas pra fora da calçada. Ele veio por trás e bateu na cabeça dela com alguma coisa pesada e a matou. Agora só falta ao senhor e à sua equipe encontrar o que foi usado como arma. Não deve estar longe porque quando eu passei e parei, tinha acabado de acontecer. Fui eu que liguei pra vocês.
    – Mas olha só aquele pobre senhor. Está em desespero. O que você está dizendo é muito improvável.
    – Sargento, um atropelamento é impossível. E depois que eliminamos o impossível, o que sobra, mesmo que seja improvável, é a verdade.
    Foi a segunda pista pro Ataíde, grande leitor de livros de mistério.
  Sargento Anacleto, claro, não levou a sério nada do que Seimor disse, mas agradeceu a colaboração, isolou a área onde estava o corpo e pediu pra levarem o marido pra outro lugar onde ele pudesse se acalmar e contar o que realmente aconteceu. Seimor se despediu dizendo ao sargento que, caso fosse comentar sua solução do crime, não deixasse de soletrar seu nome de guerra direito.
    – Seimor Plooth. Como está no cartão. Vai ser bom pros negócios!
    Não muito longe dali, na avenida Rio Branco, um jovem de uns vinte anos encostava sua bicicleta e entregava cinco celulares pra um receptador. É uma prática na região. As bicicletas passam em velocidade por pessoas incautas que falam ao celular. Num gesto preciso e rápido, arrancam o celular da mão da vítima e seguem velozes pra longe. Ninguém consegue pegá-los.
    – Consegui esses hoje. O último foi maluco, tá ligado? A véia tava na beira da calçada falando no celular. Quando eu tava chegando, ela deu um passo, acho que ia atravessar, tá ligado? O guidão da bike bateu no ombro dela, ela girou que nem um pião e caiu de cabeça na guia. Eu peguei o celular no giro, tá ligado? Esse devia valer mais!
    O sargento Anacleto chegou à conclusão real depois de conversar com o marido que estava uns passos atrás da esposa enquanto ela conversava com o filho ao celular.
    Seimor Plooth ainda acredita que desvendou mais um crime misterioso da grande e fria metrópole. Tudo estava muito claro para ele. 
    – Elementar, mon ami! 

terça-feira, 6 de abril de 2021

CRIATURAS

 

Todas as noites, ali pelas três e meia da madrugada, Alceu acordava, tomava um
café, acendia um cigarro e se sentava à mesa da sala para ler um pouco. A mesa para seis pessoas ficava numa ponta da sala. Sentado ali, Alceu via o sofá, as poltronas, a TV e, na parede oposta, a janela.

Naquela noite, sobre a mesa, havia restos do jantar. A família combinou de recolher e limpar tudo logo pela manhã. Alguns copos contendo refrigerantes, outros restos de cerveja. Uma caixa de medicamentos de onde a esposa de Alceu havia caçado o remédio costumeiro para sua cólica mensal completava a bagunça sobre a mesa. Alceu afastou dois pratos e um copo pra conseguir um pequeno espaço pro cinzeiro e pro livro.

Ao levantar a cabeça, viu a coisa vindo pela janela. Era arredondada, do tamanho de uma bola de futebol. Por toda a superfície da criatura esférica havia protuberâncias. Pequenas trombas com o que pareciam ventosas nas pontas. A criatura se movia na direção da mesa emitindo um som pelas trombas que lembrava o ruído que se faz ao sugar o último gole de alguma coisa através de um canudinho.

O susto foi substituído por um grande medo quando viu que não era uma criatura só. Várias invadiram a sala. Todas fazendo aquele barulho. Todas indo em direção à mesa onde ele estava! Alceu começou a sentir falta de ar.

O medo virou pânico quando percebeu que o barulho produzido era realmente de sucção. As criaturas estavam sugando o ar da sala. A falta de ar não era provocada pelo medo. O ar estava mesmo acabando!

Alceu tentou fugir mas se moveu com lentidão, como se estivesse nadando em gelatina. As criaturas começaram a subir na mesa. Alceu quase não respirava mais, a sensação era de que não havia mais ar à sua volta. O peso das criaturas sobre a borda fizeram a mesa virar. Restos de arroz, fragmentos de carne, vegetais crus e cozidos foram despejados junto com guaraná, cerveja, analgésicos, antibióticos, antipiréticos, cremes, xaropes, tudo o que havia na caixa de remédios. As criaturas retrocederam alguns centímetros. Alceu notou a reação e, mesmo com movimentos lentos, quase rastejando, chegou ao ponto do chão onde tudo estava misturado. Foi pegando itens, dois a dois, três a três, estirando os braços, até que acertou uma combinação que fez as criaturas se afastarem mais um pouco. Fez um bolinho com aqueles itens e atirou sobre uma delas. A bola cheia de pequenas trombas emitiu um silvo e explodiu! Alceu juntou novamente aqueles ingredientes, uns sólidos, outras líquidos, lançou sobre outra criatura e nova explosão se produziu! Cada ítem daquele devia conter alguma coisa que, combinada com os outros, eliminava por completo os invasores.

Nesse instante, Alceu sentiu uma dor intensa começar pela sua boca, passar pela garganta e atingir seu peito. De repente havia ar no mundo. Ele estava respirando!

*****

A enfermeira não ouviu. Quem informou ao médico foi a técnica em enfermagem que a auxiliava. O médico não levou a sério. Era impossível que Alceu tivesse falado alguma coisa antes de ser intubado. Estava extremamente sedado e sob efeito de bloqueadores neuromusculares. Coma induzido. Mas ela jura que ouviu o paciente do leito 19 balbuciar um segundo antes de introduzirem o tubo.

Alceu foi curado. Voltou pra casa. Não se lembrava de nada. Nem do sofrimento, nem dos remédios, nem do tubo, nem mesmo de sonhos ou visões que teve. Lamentavelmente, também não se lembrava da combinação certa que poderia ser uma pista pra acabar com o pesadelo dos que estavam acordados. Nem se lembrava de ter murmurado quando a técnica em enfermagem se aproximou dele:

- É assim que eles morrem!