Ele
queria muito aquele trabalho. Aquela profissão era a dos seus sonhos. Muito
jovem, cheio de planos, esperanças, ideais, deixou de lado imposições de
família, adiou projetos e mergulhou de cabeça naquele mundo no qual ele
pretendia viver para sempre.
O
começo quase o desanimou. Era difícil entrar naquele meio. Profissionais
antigos, bem posicionados, os De-Sempre, torciam o nariz, viravam as costas,
não queriam muito envolvimento com ele e com outros como ele, novos,
inexperientes, sem treino. O mercado exigia gente treinada e rápida pro
trabalho. Era difícil conseguir uma participação. Ele não sabia todas as regras
daquele ambiente, estava tentando se familiarizar, tentando se inteirar, se
encaixar, se adequar. Tentando ser aceito. E isso era o mais difícil.
-
Quem é esse aí?
-
Nunca ouvi falar.
-
Por que ele está participando do nosso trabalho?
-
Deve ser porque faz mais barato do que nós, os De-Sempre.
E,
na verdade, isso acontecia mesmo. Ele acabava fazendo pequenos trabalhos,
participações desimportantes e o custo do trabalho dele acabava sendo menor.
Sem saber ele burlava regras. Mais tarde descobriu que estava transgredindo
essa ou aquela norma. Os De-Sempre alegavam com tanta segurança que aquilo era
A Lei que ele acreditava. Sem verificar. Sem meios de descobrir. Não era lei
nenhuma, era apenas uma norma interna, um combinado, uma praxe, mas ele engolia
a afirmação de que era A Lei e pronto.
Com
o tempo, aprendendo aqui e ali, ele foi descobrindo que realmente estava
passando por cima de uma coisa ou outra. Em cada lugar aonde ele ia exercer seu
sonho havia uma transgressão diferente que era condição sine-qua-non para que
os Nunca-Ouvi-Falar pudessem estar lá. Com os De-Sempre não se tentavam aquelas
pequenas transgressões. Só as grandes. E grandes transgressões não se comentam,
não aparecem, um De-Sempre não acusa outro De-Sempre, a irmandade se protege.
Mas os Nunca-Ouvi-Falar apareciam. E ele ainda era um Nunca-Ouvi-Falar.
Qualquer deslize dele era notícia e motivo para bloqueios.
Mesmo
com toda a dificuldade que um Nunca-Ouvi-Falar tem que enfrentar, ele insistiu.
Se manteve apegado ao sonho, ele ia pertencer àquele mundo. Sua intenção
inicial era simplesmente entrar, participar e ser reconhecido pelo que fizesse.
Agora ele já estava mais calejado e sabia que a única maneira segura de se
manter no sonho era se tornar um De-Sempre. Mas ele já havia feito coisas que
os De-Sempre consideravam pecado mortal. A princípio por ignorância. Depois,
por medo de perder a migalha que havia conquistado.
O
tempo foi passando e ele, talentoso que era, foi mostrando que podiam arriscar
nele, que já havia aprendido ao menos o básico, que poderia alçar voos um pouco
maiores. Foi se encaixando, tendo oportunidades.
Dez
anos haviam se passado. Ele já tinha deixado de ser oficialmente um
Nunca-Ouvi-Falar. Mas os enganos do passado ainda estavam grudados na pele
dele, dentro das roupas dele, escorrendo pela grafia do nome dele. Era difícil
se livrar daquilo. Os De-Sempre eram implacáveis. E ele ainda sofreu por mais
alguns anos os freios rasgando sua boca, as rédeas impedindo seu progresso, as
esporas ferindo seu flanco para que ele corresse pra longe. Mas ele resistiu.
Agora
mais velho, mais experiente, mais político, mais esperto, mais vivido, ele já
tinha aprendido as verdadeiras regras do jogo, já tinha entendido como é que se
cometiam os Grandes Pecados em particular e como se recriminavam publicamente
os pequenos. Ele já tinha treino profissional para fazer bem o trabalho, já
tinha segurança suficiente para encarar desafios, já tinha relacionamentos que
bastassem para conseguir chamados e colocações. Mas ele ainda estava no limbo.
Ainda não era visto como um De-Sempre.
Um
dia ele viu surgirem novas pessoas. Novos jovens com planos, esperanças e
ideais. E, claro, com desconhecimentos, com enganos, com erros, com
impropriedades. Um desses jovens estava batalhando sua entrada no mercado e
alguém perguntou:
-
Quem é esse aí?
Instintivamente,
ele soltou a resposta esperada:
-
Nunca ouvi falar.
Olhares
interessados se voltaram para ele. Alguns profissionais que ele passou a vida
admirando começaram a desenvolver teorias com ele. Os comentários das pessoas
em volta passaram a inclui-lo e sua opinião começou a ser pedida e ouvida. Ele,
então, para solidificar o momento, para não deixar a oportunidade escorrer por
seus dedos, complementou:
-
Deve estar aí porque é baratinho.
Naquele
momento ele atingiu o ápice. Tornou-se, imediatamente, um De-Sempre. Dali em
diante ele passaria a viver no tão sonhado Olimpo. Mas dentro dele, no mesmo
instante, morria um jovem cheio de planos, esperanças e ideais que tinha lutado
muito pra se manter à tona por mais de uma década.
(Crônica publicada no e-book O CRONISTA, à venda na Amazon - Veja quadro ao lado)
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