O celular toca,
eu atendo e, devido à providencial identificação de chamadas, já sei que não
vou ouvir ALÔ.
- Sabe o que me
deixa estressado?
- Grande
Ascenço! Quanto tempo!
Ascenço, meu
velho amigo neurastênico a quem tudo estressa.
- E aí, cumpade?
O que anda fazendo?
- Ando me
estressando.
- Mas o que tem
estressado você? – e, já conhecendo o Ascenço - Faz um resumo, poucas palavras.
- Pois é. Poucas
palavras! Estão ficando cada vez mais poucas!
- Não entendi.
- Você é um
homem das palavras! Trabalha com elas! Vive delas! E não está percebendo a
extinção delas?
- Bom, tirando
NOSOCÔMIO e BELETRISMO, não me ocorre mais nenhuma palavra em extinção. – ainda
tentei brincar.
- Vai fazendo
piada. Já tivemos a abolição de elogios. Ninguém mais diz que uma coisa é ótima,
excelente, boa, bem feita, de qualidade, ninguém diz que alguém é competente,
exímio, habilidoso, eficiente, nada mais é genial, inteligente... Tudo isso foi
substituído por uma única palavrinha de quatro letras que, convenhamos, antes
designava o contrário, uma coisa ruim ou uma situação difícil.
Achei engraçado
o Ascenço evitando o uso da palavra FODA, mas ele é meio antiguinho.
- Mas a gente
até já conversou sobre isso, Ascenço. Você se estressou de novo pelo mesmo
motivo? Está se aprimorando!
- Não! Essa eu
já superei. Foi só um exemplo introdutório.
Eu ia comentar sobre
a ligação entre a palavra que ele não queria dizer e a idéia de introduções,
mas achei melhor não estressar mais o meu amigo.
- Agora tem essa
tal de GRATIDÃO!
- Ué... Mas
GRATIDÃO não é uma coisa nova, Ascenço, e nem mudou de significado.
- Mas ela está
levando as outras à extinção! Temos palavras que deixam claro o estado de
espírito de quem recebe favores, gentilezas, apoio e tudo mais. Temos a palavra
GRATO, que indica que o camarada se sente gratificado pelo que recebeu. Temos OBRIGADO.
Numa posição de humildade, a pessoa se sente com obrigações com quem a
favoreceu. Quando um sujeito diz AGRADECIDO, ele abre o coração de forma leve e
agradável, deixa claro qual é a sensação criada nele pelo que o outro fez. Até
mesmo a mais recente, VALEU, é pessoal. Mostra que o gesto teve valor, que foi
benéfico. O que a outra pessoa fez teve alguma validade em sua vida.
- Mas por que
você acha que essas palavras estão em extinção?
- Porque ninguém
mais usa! Agora só se diz GRATIDÃO! Uma palavra suspensa no ar, um substantivo,
não qualifica ninguém, não deixa claro nem quanto a quem sente essa tal
gratidão. Ela está lá, solta, existe, pega aí, se você quiser. E não me cobre,
nunca! Eu disse que havia gratidão, mas não disse que ela se originava em mim!
Acham isso moderninho, esotérico, engajado no pensamento contemporâneo, cósmico,
sei lá o quê. Mas eu acho meio impessoal e quase deseducado.
Quando o Ascenço
desligou me desejando feliz Ano Novo, tudo o que consegui dizer foi IGUALMENTE.
Eu não estava sendo formal. Só estava confuso quanto a como agradecer a ele.