sábado, 30 de dezembro de 2017

GRATIDÃO?

O celular toca, eu atendo e, devido à providencial identificação de chamadas, já sei que não vou ouvir ALÔ.
- Sabe o que me deixa estressado?
- Grande Ascenço! Quanto tempo!
Ascenço, meu velho amigo neurastênico a quem tudo estressa.
- E aí, cumpade? O que anda fazendo?
- Ando me estressando.
- Mas o que tem estressado você? – e, já conhecendo o Ascenço -  Faz um resumo, poucas palavras.
- Pois é. Poucas palavras! Estão ficando cada vez mais poucas!
- Não entendi.
- Você é um homem das palavras! Trabalha com elas! Vive delas! E não está percebendo a extinção delas?
- Bom, tirando NOSOCÔMIO e BELETRISMO, não me ocorre mais nenhuma palavra em extinção. – ainda tentei brincar.
- Vai fazendo piada. Já tivemos a abolição de elogios. Ninguém mais diz que uma coisa é ótima, excelente, boa, bem feita, de qualidade, ninguém diz que alguém é competente, exímio, habilidoso, eficiente, nada mais é genial, inteligente... Tudo isso foi substituído por uma única palavrinha de quatro letras que, convenhamos, antes designava o contrário, uma coisa ruim ou uma situação difícil.
Achei engraçado o Ascenço evitando o uso da palavra FODA, mas ele é meio antiguinho.
- Mas a gente até já conversou sobre isso, Ascenço. Você se estressou de novo pelo mesmo motivo? Está se aprimorando!
- Não! Essa eu já superei. Foi só um exemplo introdutório.
Eu ia comentar sobre a ligação entre a palavra que ele não queria dizer e a idéia de introduções, mas achei melhor não estressar mais o meu amigo.
- Agora tem essa tal de GRATIDÃO!
- Ué... Mas GRATIDÃO não é uma coisa nova, Ascenço, e nem mudou de significado.
- Mas ela está levando as outras à extinção! Temos palavras que deixam claro o estado de espírito de quem recebe favores, gentilezas, apoio e tudo mais. Temos a palavra GRATO, que indica que o camarada se sente gratificado pelo que recebeu. Temos OBRIGADO. Numa posição de humildade, a pessoa se sente com obrigações com quem a favoreceu. Quando um sujeito diz AGRADECIDO, ele abre o coração de forma leve e agradável, deixa claro qual é a sensação criada nele pelo que o outro fez. Até mesmo a mais recente, VALEU, é pessoal. Mostra que o gesto teve valor, que foi benéfico. O que a outra pessoa fez teve alguma validade em sua vida.
- Mas por que você acha que essas palavras estão em extinção?
- Porque ninguém mais usa! Agora só se diz GRATIDÃO! Uma palavra suspensa no ar, um substantivo, não qualifica ninguém, não deixa claro nem quanto a quem sente essa tal gratidão. Ela está lá, solta, existe, pega aí, se você quiser. E não me cobre, nunca! Eu disse que havia gratidão, mas não disse que ela se originava em mim! Acham isso moderninho, esotérico, engajado no pensamento contemporâneo, cósmico, sei lá o quê. Mas eu acho meio impessoal e quase deseducado.
Quando o Ascenço desligou me desejando feliz Ano Novo, tudo o que consegui dizer foi IGUALMENTE. 
Eu não estava sendo formal. Só estava confuso quanto a como agradecer a ele.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O NUNCA-OUVI-FALAR

Ele queria muito aquele trabalho. Aquela profissão era a dos seus sonhos. Muito jovem, cheio de planos, esperanças, ideais, deixou de lado imposições de família, adiou projetos e mergulhou de cabeça naquele mundo no qual ele pretendia viver para sempre.
O começo quase o desanimou. Era difícil entrar naquele meio. Profissionais antigos, bem posicionados, os De-Sempre, torciam o nariz, viravam as costas, não queriam muito envolvimento com ele e com outros como ele, novos, inexperientes, sem treino. O mercado exigia gente treinada e rápida pro trabalho. Era difícil conseguir uma participação. Ele não sabia todas as regras daquele ambiente, estava tentando se familiarizar, tentando se inteirar, se encaixar, se adequar. Tentando ser aceito. E isso era o mais difícil.
- Quem é esse aí?
- Nunca ouvi falar.
- Por que ele está participando do nosso trabalho?
- Deve ser porque faz mais barato do que nós, os De-Sempre.
E, na verdade, isso acontecia mesmo. Ele acabava fazendo pequenos trabalhos, participações desimportantes e o custo do trabalho dele acabava sendo menor. Sem saber ele burlava regras. Mais tarde descobriu que estava transgredindo essa ou aquela norma. Os De-Sempre alegavam com tanta segurança que aquilo era A Lei que ele acreditava. Sem verificar. Sem meios de descobrir. Não era lei nenhuma, era apenas uma norma interna, um combinado, uma praxe, mas ele engolia a afirmação de que era A Lei e pronto.
Com o tempo, aprendendo aqui e ali, ele foi descobrindo que realmente estava passando por cima de uma coisa ou outra. Em cada lugar aonde ele ia exercer seu sonho havia uma transgressão diferente que era condição sine-qua-non para que os Nunca-Ouvi-Falar pudessem estar lá. Com os De-Sempre não se tentavam aquelas pequenas transgressões. Só as grandes. E grandes transgressões não se comentam, não aparecem, um De-Sempre não acusa outro De-Sempre, a irmandade se protege. Mas os Nunca-Ouvi-Falar apareciam. E ele ainda era um Nunca-Ouvi-Falar. Qualquer deslize dele era notícia e motivo para bloqueios.
Mesmo com toda a dificuldade que um Nunca-Ouvi-Falar tem que enfrentar, ele insistiu. Se manteve apegado ao sonho, ele ia pertencer àquele mundo. Sua intenção inicial era simplesmente entrar, participar e ser reconhecido pelo que fizesse. Agora ele já estava mais calejado e sabia que a única maneira segura de se manter no sonho era se tornar um De-Sempre. Mas ele já havia feito coisas que os De-Sempre consideravam pecado mortal. A princípio por ignorância. Depois, por medo de perder a migalha que havia conquistado.
O tempo foi passando e ele, talentoso que era, foi mostrando que podiam arriscar nele, que já havia aprendido ao menos o básico, que poderia alçar voos um pouco maiores. Foi se encaixando, tendo oportunidades.
Dez anos haviam se passado. Ele já tinha deixado de ser oficialmente um Nunca-Ouvi-Falar. Mas os enganos do passado ainda estavam grudados na pele dele, dentro das roupas dele, escorrendo pela grafia do nome dele. Era difícil se livrar daquilo. Os De-Sempre eram implacáveis. E ele ainda sofreu por mais alguns anos os freios rasgando sua boca, as rédeas impedindo seu progresso, as esporas ferindo seu flanco para que ele corresse pra longe. Mas ele resistiu.
Agora mais velho, mais experiente, mais político, mais esperto, mais vivido, ele já tinha aprendido as verdadeiras regras do jogo, já tinha entendido como é que se cometiam os Grandes Pecados em particular e como se recriminavam publicamente os pequenos. Ele já tinha treino profissional para fazer bem o trabalho, já tinha segurança suficiente para encarar desafios, já tinha relacionamentos que bastassem para conseguir chamados e colocações. Mas ele ainda estava no limbo. Ainda não era visto como um De-Sempre.
Um dia ele viu surgirem novas pessoas. Novos jovens com planos, esperanças e ideais. E, claro, com desconhecimentos, com enganos, com erros, com impropriedades. Um desses jovens estava batalhando sua entrada no mercado e alguém perguntou:
- Quem é esse aí?
Instintivamente, ele soltou a resposta esperada:
- Nunca ouvi falar.
Olhares interessados se voltaram para ele. Alguns profissionais que ele passou a vida admirando começaram a desenvolver teorias com ele. Os comentários das pessoas em volta passaram a inclui-lo e sua opinião começou a ser pedida e ouvida. Ele, então, para solidificar o momento, para não deixar a oportunidade escorrer por seus dedos, complementou:
- Deve estar aí porque é baratinho.

Naquele momento ele atingiu o ápice. Tornou-se, imediatamente, um De-Sempre. Dali em diante ele passaria a viver no tão sonhado Olimpo. Mas dentro dele, no mesmo instante, morria um jovem cheio de planos, esperanças e ideais que tinha lutado muito pra se manter à tona por mais de uma década.


(Crônica publicada no e-book O CRONISTA, à venda na Amazon - Veja quadro ao lado)