Aí ele
acordou...
Levantou-se
e foi até a sala. Viu copos e pratos sobre a mesa, restos de pernil, algumas
taças com vestígios de mousse de manga. Em volta da árvore enfeitada, indícios
do que tinha sido a noite anterior, a alegria das crianças rasgando em tiras
papéis de presentes. A festa de Natal havia passado.
Na
cozinha, colado na garrafa térmica a qual todos sabiam que ele iria procurar
assim que acordasse em busca do reconfortante gole de café que, junto com o
subsequente primeiro cigarro do dia, traria equilíbrio ao pobre cérebro confuso
depois de uma festa, havia um bilhete: “Não quis acordar você. Fui passear no
parque com as crianças. Voltaremos depois do almoço.”
O
café e o cigarro não ajudaram na confusão mental que o bilhete causou. No
parque? Com as crianças? E o isolamento? E a pandemia?
Ligou
a TV e as notícias deram um arremate na perplexidade. Falava-se de política, de
esporte, de eventos pós-natal, mas nada sobre Covid.
Após
o estranhamento inicial, passou a prestar atenção ao que era dito. Em um canal
noticiaram as inaugurações de um novo hospital e três novas escolas marcadas
para dia dois de janeiro. Em outro, um programa de debate político com pessoas
que ele não conhecia mas que, claramente, eram de espectros bem opostos. Mas
ninguém alterava a voz, discutiam-se ideias e propostas. Mudou de canal e, em
um programa de variedades, comentava-se sobre o Natal em um bairro mais
afastado, onde prefeitura e empresas da cidade se aliaram para prover uma ceia
e presentes pras crianças cujas famílias eram as últimas que ainda não tinham
entrado no novo programa de empregos, coisa que, pelo que estavam dizendo,
ocorreria, no máximo, na metade de janeiro. Em um canal religioso, viu,
atônito, um pastor evangélico, um monge budista, um hindu, um padre, um rabino,
um imã e um babalaorixá deliberando em que pontos e a que nível eles poderiam
colaborar uns com os outros em causas sociais.
Sem
saber o que estava acontecendo, acessou a Internet e ali viu a criação de
postos de saúde, a ampliação de transportes públicos, anúncios de medicamentos a
preços bem acessíveis contra males cuja cura nem se antevia.
Um
pensamento maluco surgiu: “Por quanto tempo eu dormi?”. Mesmo se achando idiota, foi ver a data. No
mesmo instante começou um pronunciamento de fim de ano do Presidente da República.
“Não
é possível... Estamos em...” e, antes de terminar o pensamento começou o
pronunciamento. “E o presidente é o...”
Aí
ele acordou.
Os
restos da festa eram os mesmos, mas a esposa e os filhos estavam pela casa
esperando que ele levantasse pra irem visitar a tia. Iam levar o presente dela.
De carro. Todos de máscara. Estavam seguros.
Ele
tomou o café, fumou o cigarro, colocou a máscara e saíram. Ele ainda estava um
pouco confuso, mas, por baixo da máscara havia um sorriso. Um sorriso meio
esperançoso. Tudo tinha sido tão real que poderia muito bem acontecer. As
coisas podiam ficar como ele viu no sonho que teve. Ou não tinha sido um sonho
e agora é que ele estava sonhando? E se tivessem sido dois sonhos e a verdade
fosse uma terceira opção?
Aí
ele acordou.