segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

INVEJAS


O velho está sentado perto da janela aberta. Segundo andar, frente pra rua. Cachimbo aceso, olhando o movimento da rua, nada pra fazer. Perna direita com uma leve infecção que não tem grandes consequências mas o impede de andar por alguns dias. Portanto, não pode ir trabalhar. Não há nada a fazer, a não ser tomar um “sol de janela” como ele costuma dizer. Lá na rua passa um rapaz em uma bicicleta e cria uma leve inveja no velho. Ele adoraria poder descer e pedalar um pouco. Mas não pode mover a perna.
O ciclista, ao passar, olha pra cima e vê aquele homem sentado à janela, com um cachimbo aceso na boca, um ar de vida ganha. Fica com uma leve inveja, já que está rodando com aquela bicicleta desde a parte da manhã, fazendo entregas pra padaria para a qual trabalha. Adoraria poder ficar sentado à janela em uma tarde de um dia de semana, sem nada pra fazer.
O sem-teto vem passando pela rua, descalço, com um saco às costas, dentro do qual há latinhas vazias, pedaços de papelão, diversos materiais que, mais tarde, ele irá transformar em alguns trocados com os quais talvez coma alguma coisa. Sente uma enorme inveja do rapaz de bicicleta, arrumadinho, de tênis, despreocupado, olhando pra cima. O sem-teto olha pra onde o rapaz está olhando e vê o velho de cachimbo. Sente uma inveja maior ainda daquele homem que tem uma casa na janela da qual ficar.
O menino de seis anos que acaba de sair da escola, vem pela calçada de mão dada com a mãe. Vê todas aquelas pessoas na rua, vê o velho na janela e, mesmo não sabendo ainda que nome dar, sente uma pequena inveja de todos os que estão livres pra fazerem o que quiserem, sem terem que ir pra escola, sem terem que fazer lição de casa, sem terem que obedecer mães. Gente grande não obedece ninguém.
O sem-teto, devido ao peso do saco que carrega tropeça e cambaleia em direção à calçada. Quase cai em cima do menino que grita assustado. A mãe puxa o menino e os dois acabam indo parar no meio da rua. O menino se agarra à mãe e enfia o rosto no peito dela, com medo de olhar. O ciclista desvia da mãe e da criança mas acaba esbarrando no sem-teto que o empurra fazendo com que caia do veículo. A mãe se afasta de tudo levando o filho com o rosto ainda escondido nela, o ciclista discute com o sem-teto que se levanta e não dá corda, simplesmente vai embora. O ciclista volta pra bicicleta, dobra a esquina e desaparece. O menino, antes de ir parar na calçada oposta ainda bem assustado, dá uma olhada pra cima e vê o velho fechando a janela dando uma última baforada no cachimbo. Olha pra trás e não vê mais ninguém. Apenas a rua vazia.
O velho comenta com a família que um bêbado arrumou encrenca com um daqueles moleques que não fazem nada na vida e passam o dia andando de bicicleta.
O sem-teto para na esquina seguinte angustiado por não ter tido coragem de discutir com o mauricinho de bicicleta. Mas o que ele poderia fazer? O moleque devia ser filhinho de papai e podia fazer com que ele ainda fosse parar na cadeia só por ter tropeçado.
O ciclista só está preocupado em voltar logo pra padaria e fazer outras entregas, não tem tempo a perder com nóias chapados de crack.
O menino passou muitos dias contando sua grande aventura pros amiguinhos na escola. Estava voltando pra casa com a mãe quando foi atacado pelo homem do saco em pessoa! A mãe, que é poderosa, o salvou na hora em que o homem ia colocá-lo dentro do saco. Um moço de bicicleta bateu no monstro e ele já ia levar o moço com bicileta e tudo mas um velho bruxo que estava numa janela ali perto, soltou fumaça do cachimbo e fez os dois desaparecerem pra sempre!
Por alguns dias, o menino foi alvo da inveja de toda a turma!

Nenhum comentário:

Postar um comentário