domingo, 28 de agosto de 2016

PARALELO

Talvez houvesse o tal mundo paralelo, pensou Adriano. Como nos filmes, livros, revistas. Um mundo igual ao nosso, com pequenas diferenças, no qual a quitinete invadida onde morava não seria no décimo-segundo andar e sim no primeiro. Ou talvez fosse no mesmo lugar, mas os móveis seriam outros. Pequenas diferenças.
Escritores antigos escreveram sobre coisas que não existiam no tempo deles. Com o tempo essas coisas foram sendo descobertas ou inventadas e se tornaram reais! A energia atômica, o submarino, as viagens espaciais. E se os escritores de agora, que “inventam” o mundo paralelo não estão inventando, apenas intuindo?
Adriano havia desenvolvido uma teoria. Ele achava que em cada situação onde quase acontecia uma tragédia, ela havia mesmo acontecido, só que em outro lugar. O sujeito atravessa uma avenida e quase é atropelado. O carro passa raspando por ele mas sequer o arranha. Na verdade, ele pensa que quase foi atropelado. Ele levou mesmo a pancada do carro. Só que uma fração de segundo antes, sua consciência foi transferida para o tal mundo paralelo, onde isso não aconteceu. E ele segue sua vida.
Os amigos de Adriano achavam maluquice, a teoria era furada porque, afinal, e o equivalente que já estava no mundo paralelo, pra onde foi? Ele retrucava dizendo que o “Sujeito Paralelo” vinha pra esta realidade e morria no lugar do outro. O sujeito que foi pro outro lado e escapou sentiu o que ia acontecer uma fração de segundo antes da batida. A sensação do perigo criou uma energia tão grande em torno dele que abriu uma passagem por onde os dois trocaram de lugar. O outro, o “paralelo” não percebeu nada. Essa foi a pequena diferença. Assim, o outro veio no mesmo instante, uma fração de segundo antes, e recebeu a pancada do carro. O “original” seguiu na direção contrária, chegou uma fração de segundo depois, e o carro não bateu nele, passou raspando.
Fosse como fosse, Adriano não conseguia parar de pensar que talvez houvesse o tal mundo paralelo. Onde ele, por exemplo, dez anos antes, não tinha tomado um porre na festa da empresa na qual trabalhava havia pouco tempo. Ele não teria saído de lá com a moça bonita, desconhecida, que passara a festa toda provocando, se insinuando, encantada com os cabelos vermelhos e os olhos verdes dos quais ele tanto se orgulhava. Ele levou a moça pra casa, os dois se divertiram muito e acabaram pegando no sono. No dia seguinte, Adriano perdeu a hora. Atrasado, assustado, tentou acordar a moça. Ela resmungou, virou pro outro lado e não acordou. Adriano ia chegar atrasado no emprego, o patrão iria descontar a diária dele. A moça, meio dormindo, disse pra ele não se preocupar, ela conversaria com o patrão e daria um jeito, já que o patrão era pai dela!
Adriano ficou num dilema. O que seria pior? Perder a diária no trabalho ou deixar o patrão saber que a filha tinha ido pra cama com ele? Adriano fez o que sempre fazia em situações de confronto: evitou tudo. Simplesmente não apareceu mais no emprego. Ninguém o procurou, mas não tinha recomendações para um novo emprego e não podia alegar experiência na profissão, já que teria que declarar onde havia trabalhado antes. Passou a viver de bicos. Um pequeno trabalho aqui, um servicinho temporário ali. Com o que ganhava não podia mais manter a vida que tinha, ainda que ela já fosse modesta. Chegou ao ponto em que estava, morando naquela quitinete em prédio ocupado por invasão. Refeições, uma por dia. Guardava o pãozinho e um pedaço da carne do prato feito do bar para fazer um sanduíche que seria devorado frio mesmo na hora do jantar.
Mas o que o fez pensar sem parar na hipótese do mundo paralelo foi o reencontro. Não foi bem um reencontro, já que a mulher não o havia reconhecido quando se esbarraram na rua. Mas ele sabia. Sabia que era ela. Dez anos haviam se passado, ela estava um pouco mais velha, mas não tão magra, desgastada, acabada pelo abandono da vida quanto ele. Ele sabia que era a filha de seu antigo patrão. E sabia quem era a menina de uns nove anos de idade que estava de mão dada com ela. O cabelo avermelhado e os lindos olhos verdes dela não deixavam qualquer dúvida! Ele tentou sorrir. Tentou se aproximar. Mas a menina, ao ver aquele desconhecido com ar sombrio se encolheu apavorada, se agarrou à mãe que, rapidamente, se afastou sem ao menos olhar pra ele.
Os olhos verdes apavorados da menina ainda estavam na sua cabeça enquanto subia pela escada até seu apartamento invadido no décimo segundo andar. Continuavam no seu pensamento quando ele se dirigiu para a janela. Quando se sentou no beiral e olhou pra baixo, tinha várias coisas na cabeça. Os olhos da menina, a beleza da mulher agora mais madura, a vida que poderia ter tido sendo marido dela, pai da menina, genro do dono da empresa, o que teria sido sua vida se tivesse tido um pouco mais de coragem.
Todas essas coisas sumiram quando saltou no vazio em direção ao chão, doze andares abaixo. Durante os poucos segundos que levou até chegar ao chão, só pensava no mundo paralelo, no lugar onde o “outro ele” teria levado a vida que ele deveria ter tido. Talvez fosse tudo verdade. Talvez um pouco antes de bater no chão ele fosse arrebatado para o outro mundo onde tudo estaria bem. Talvez tudo aquilo fosse mesmo possível.
Só no último instante, uma fração de segundo antes de atingir o solo, é que ocorreu a ele a possibilidade definitiva: talvez não!