quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O CHUTE

Se, na faculdade, Vanessa não tivesse chutado Adelmo, trocando-o por um aluno de Educação Física, ele não teria ficado, como sempre dizia, mais amargo do que jiló sem tempero.
Se Adelmo não tivesse ficado amargo, não teria perdido aulas, não teria se afastado da faculdade, não teria ficado, como sempre dizia, com a cabeça desarrumada e teria se formado em jornalismo.
Se ele tivesse se formado em jornalismo, talvez tivesse tido uma carreira, como sempre dizia, se não brilhante, pelo menos satisfatória.
Se tivesse tido uma carreira, Adelmo não teria abandonado a si mesmo e não teria mergulhado na bebida, vivendo de porre, como sempre dizia, dia sim e o outro também.
Se ele não vivesse alcoolizado, não teria atravessado a avenida Sumaré daquele jeito e não teria levado a pancada que levou do Fiat cujo motorista não acreditou que ele fosse mesmo ficar parado no meio da pista olhando pra ontem, como Adelmo sempre dizia.
Se o motorista do Fiat não tivesse parado e prestado socorro, Adelmo não teria ido pro Hospital Sorocabano, na Lapa, e não teria sido atendido pela Ester que, como ele sempre dizia, foi o anjo que entrou na vida dele empurrado por um Fiat. 
Se Adelmo não se arriscasse, no dia da alta, a convidar Ester para uma cerveja, ela não poderia dizer a ele que não bebia mas que aceitaria uma Coca. Como ele sempre dizia, era melhor do que nada.
Se Ester tomasse cerveja, talvez Adelmo não tivesse repensado sua vida até ali e ela não seria, como ele sempre dizia, um “divisor de álcool” na vida dele.
Se Adelmo não tivesse mudado sua vida, Ester não aguentaria se encontrar mais vezes com um bêbado, mesmo já estando, como ele sempre dizia, com as quatro rodas arriadas por ele.
Mas Adelmo mudou. Se casou com Ester. Começou um pequeno negócio de entregas. Ester saiu do hospital para ajudá-lo no negócio. Eles progrediram. Em poucos anos tinham uma transportadora. Vieram os filhos. Três. Dois meninos e uma menina. Os filhos cresceram. Se formaram. O menino do meio em jornalismo, pra orgulho do pai. Os três se casaram. O filho mais velho deu dois netos pro Adelmo. O do meio e a mais nova deram um cada um. Os netos cresceram. Se tornaram jovens bonitos, bem criados, educados, toda a família era muito orgulhosa de todos e de cada um de seus membros.
Adelmo envelheceu feliz. Muito feliz.
Bem próximo do fim, com a boa e velha Ester ao seu lado relembrando seus tempos de enfermeira, com os filhos e os netos em volta, todos preparados para o adeus, Adelmo fez uma confissão: nunca tinha perdido Vanessa de vista. Não fez contato, nunca mais falou com ela, mas sabia por onde andava, como tinha vivido, sabia até endereço e telefone. Ester ficou chocada, mas não se mostrou ofendida. Um poço sem fundo de calma e compreensão, como Adelmo sempre dizia.
Ele garantiu pra esposa que desde que a conheceu nunca mais pensou em Vanessa como mulher, como namorada, como possível amante, nem mesmo imaginou como teria sido se ela não o tivesse chutado. Estava feliz com Ester, com os filhos, com os netos, com a vida que teve. Se manteve informado sobre ela apenas como... não sabia bem como o quê. Talvez só a idéia masculina de posse, “o que um dia foi meu não deixa de ser minha propriedade”, como sempre dizia. Foi assim com casas das quais se mudou, com amigos que foram embora do país, até mesmo com o primeiro carro que usou no começo para fazer entregas. Sempre esteve informado de tudo o que tinha passado por ele. E com a Vanessa foi a mesma coisa.
A respiração já estava curta. O cansaço quase não o deixava falar. Estava chegando a hora. A família, em volta, já sentia toda a tristeza pela qual passariam.
Mesmo falando baixo e de maneira entrecortada, Adelmo pediu ao filho mais velho sua agenda. Ele ainda mantinha uma tradicional, de papel, apesar de todos os bancos de dados que tinha na empresa. Abriu a agenda na letra V. Pegou o celular da filha, digitou um número e esperou. Ouviu uma voz feminina um tanto envelhecida mas inconfundível. Olhou para cada pessoa em volta, todos com algum detalhe dele mesmo em seus rostos, uma coletânea de Adelmos mais magros, mais gordos, mais bonitos, mais engraçados, todos mais jovens, todos tão amados. Em seguida olhou para sua velha companheira, seu anjo protetor, sua salvadora. Por fim, ao celular, para Vanessa, Adelmo disse uma coisa que nunca dissera: “Obrigado”.
Um bom chute na bunda empurra um homem pra frente, como ele sempre dizia.

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