Se, na faculdade,
Vanessa não tivesse chutado Adelmo, trocando-o por um aluno de Educação Física, ele não
teria ficado, como sempre dizia, mais amargo do que jiló sem tempero.
Se Adelmo não
tivesse ficado amargo, não teria perdido aulas, não teria se afastado da faculdade,
não teria ficado, como sempre dizia, com a cabeça desarrumada e teria se
formado em jornalismo.
Se ele tivesse se
formado em jornalismo, talvez tivesse tido uma carreira, como sempre dizia, se
não brilhante, pelo menos satisfatória.
Se tivesse tido uma
carreira, Adelmo não teria abandonado a si mesmo e não teria mergulhado na
bebida, vivendo de porre, como sempre dizia, dia sim e o outro também.
Se ele não vivesse alcoolizado,
não teria atravessado a avenida Sumaré daquele jeito e não teria levado a
pancada que levou do Fiat cujo motorista não acreditou que ele fosse mesmo
ficar parado no meio da pista olhando pra ontem, como Adelmo sempre dizia.
Se o motorista do
Fiat não tivesse parado e prestado socorro, Adelmo não teria ido pro Hospital
Sorocabano, na Lapa, e não teria sido atendido pela Ester que, como ele sempre dizia, foi o anjo que entrou na vida dele empurrado por um Fiat.
Se Adelmo não se arriscasse,
no dia da alta, a convidar Ester para uma cerveja, ela não poderia dizer a ele
que não bebia mas que aceitaria uma Coca. Como ele sempre dizia, era melhor do
que nada.
Se Ester tomasse
cerveja, talvez Adelmo não tivesse repensado sua vida até ali e ela não seria,
como ele sempre dizia, um “divisor de álcool” na vida dele.
Se Adelmo não
tivesse mudado sua vida, Ester não aguentaria se encontrar mais vezes com um bêbado,
mesmo já estando, como ele sempre dizia, com as quatro rodas arriadas por ele.
Mas Adelmo mudou.
Se casou com Ester. Começou um pequeno negócio de entregas. Ester saiu do
hospital para ajudá-lo no negócio. Eles progrediram. Em poucos anos tinham uma
transportadora. Vieram os filhos. Três. Dois meninos e uma menina. Os filhos
cresceram. Se formaram. O menino do meio em jornalismo, pra orgulho do pai. Os
três se casaram. O filho mais velho deu dois netos pro Adelmo. O do meio e a
mais nova deram um cada um. Os netos cresceram. Se tornaram jovens bonitos, bem
criados, educados, toda a família era muito orgulhosa de todos e de cada um de
seus membros.
Adelmo envelheceu
feliz. Muito feliz.
Bem próximo do fim,
com a boa e velha Ester ao seu lado relembrando seus tempos de enfermeira, com os
filhos e os netos em volta, todos preparados para o adeus, Adelmo fez uma
confissão: nunca tinha perdido Vanessa de vista. Não fez contato, nunca mais
falou com ela, mas sabia por onde andava, como tinha vivido, sabia até endereço
e telefone. Ester ficou chocada, mas não se mostrou ofendida. Um poço sem fundo
de calma e compreensão, como Adelmo sempre dizia.
Ele garantiu pra
esposa que desde que a conheceu nunca mais pensou em Vanessa como mulher, como
namorada, como possível amante, nem mesmo imaginou como teria sido se ela não o
tivesse chutado. Estava feliz com Ester, com os filhos, com os netos, com a
vida que teve. Se manteve informado sobre ela apenas como... não sabia bem como
o quê. Talvez só a idéia masculina de posse, “o que um dia foi meu não deixa de
ser minha propriedade”, como sempre dizia. Foi assim com casas das quais se
mudou, com amigos que foram embora do país, até mesmo com o primeiro carro que
usou no começo para fazer entregas. Sempre esteve informado de tudo o que tinha
passado por ele. E com a Vanessa foi a mesma coisa.
A respiração já
estava curta. O cansaço quase não o deixava falar. Estava chegando a hora. A
família, em volta, já sentia toda a tristeza pela qual passariam.
Mesmo falando baixo
e de maneira entrecortada, Adelmo pediu ao filho mais velho sua agenda. Ele
ainda mantinha uma tradicional, de papel, apesar de todos os bancos de dados
que tinha na empresa. Abriu a agenda na letra V. Pegou o celular da filha, digitou
um número e esperou. Ouviu uma voz feminina um tanto envelhecida mas inconfundível.
Olhou para cada pessoa em volta, todos com algum detalhe dele mesmo em
seus rostos, uma coletânea de Adelmos mais magros, mais gordos, mais bonitos,
mais engraçados, todos mais jovens, todos tão amados. Em seguida olhou para sua
velha companheira, seu anjo protetor, sua salvadora. Por fim, ao celular,
para Vanessa, Adelmo disse uma coisa que nunca dissera: “Obrigado”.
Um bom chute na
bunda empurra um homem pra frente, como ele sempre dizia.
Linda historia, acredito muito ser verdadeira.
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